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TEMPO EM BERLIM #3: WARHOL POR GOBSQUAD

Após o belo espetáculo de Bob Wilson, nos dois dias seguintes, fui ao teatro Volksbühne, onde assisti duas peças do coletivo GobSquadKitchen e Revolution Now. Composto por ingleses e alemães, o grupo trabalha principalmente na língua inglesa; pude, enfim, compreender o texto, ufa!

O trabalho do GobSquad se destaca por sua capacidade de combinar teatro e vídeo de forma improvisada, em um formato que confere tanto um sentido de imediatismo às imagens quanto uma incerteza do que está por vir. A ação é realizada para as câmeras e suas imagens são projetadas ao vivo para o público. Muitas vezes, o jogo dos atores depende da participação dos espectadores e até mesmo de transeuntes passeando na rua, sem intenção de assistir, muito menos participar de um espetáculo.

“Kitchen” é uma remontagem | refilmagem do clássico filme homônimo dirigido por Andy Warhol em 1965, bem como dos vídeos Eat, Sleep (ambos de 1963) e Screen Tests (1964 – 1966). Ao entrar no teatro, o público é convidado a subir no palco, escondido da plateia por meio de um telão. Neste momento, somos cumprimentados pelos atores e conhecemos três dos cenários que compõem o espetáculo, réplicas improvisadas do cenário original do filme. Descendo para a plateia e encontrando o assento, somos informados que toda a ação no palco será filmada e projetada ao vivo no telão que esconde o palco.

Nada demais acontece no filme original. Os atores não têm falas para decorar, as imagens capturadas são de pessoas vivendo, jogando papo fora, trocando ideias do que está na moda, falando sobre festas, drogas e rock’n’roll. O clima é tipicamente representativo do hedonismo que marca os anos sessenta norte-americanos.

No espírito do filme, o espetáculo começa com os atores tentando decidir o que fazer. Eles descrevem alguns adereços do cenário e discutem atitudes e ações que deveriam ser realizadas por evocar a década de sessenta. Tudo se passa numa cotidianidade, cigarro atrás de cigarro, com os performers inventando o que vem depois.

O espetáculo, porém, apresenta uma leveza e um humor que o filme não tem. Isso se dá pelo fato que o GobSquad está assumidamente tentando reinventar uma década e não a vivendo a própria década. Suavidade também vem à tona no convite feito pelos atores a alguns membros da plateia para participar da “trama” em seus lugares. Para tanto, os participantes recebem um kit de radio transmissor pelo qual são dirigidos pelos atores que substituíram, recebendo falas e ações. O que acontece é uma espécie de Big Brother do passado, porém com uma consciência de se estar buscando reproduzir e representar uma determinada época. Tudo ao vivo e espontâneo, dando margem a muito improviso e a uma cumplicidade da plateia, mesmo que estejam separados pelo painel de projeção.

Em “Revolution Now” não há separação. O elenco está na parte da frente da plateia, e o palco, de cortinas fechadas. Estamos todos juntos, unidos pela causa de uma “revolução” que está sendo televisionada ao vivo. Tudo o que acontece dentro do teatro é transmitido para uma televisão na praça ao lado deste para que o “mundo” possa acompanhar. Contamos com um telão dentro do teatro onde projetam as imagens sendo televisionadas e imagens da praça em frente à televisão.

O espetáculo começa com um vídeo ao vivo dos atores na rua entrando no teatro, tocando e cantando “The times they are a-changin” de Bob Dylan. Novamente, a proposta não é contar uma história com começo, meio e fim, sem um roteiro a ser seguido ao pé da letra. É um happening. Os atores tem o objetivo de chamar a atenção do “mundo” (indivíduos passeando pela cidade) através da pequena televisão que fica na praça, para que venham participar da revolução, se juntando a massa dentro do teatro.

Nós, espectadores, somos cúmplices e os atores pedem nossa ajuda para conseguir a atenção do mundo. Para isso, contam com um repertório de canções revolucionárias e vários adereços espalhados desordenadamente numa mesa no palco: câmeras, televisões, microfones, bandeiras, máscaras, fardas, pistolas etc. Além disso, nas primeiras fileiras da plateia, dezesseis guitarras e amplificadores estão disponíveis para alguns membros do público participarem de um número musical (de barulho!) na hora de chamar o “mundo” lá fora para se juntar à massa revolucionária do teatro. Participei deste momento como um dos guitarristas.

Alguns atores se dirigem para fora do teatro com uma câmera e microfone enquanto outros permanecem conosco no teatro. Os que estão fora encontram alguém que se dispõe a ouvir o que tem (temos) a dizer e, conforme o tempo passa, o/a convencem de participar de alguns atos de revolução, incluindo aí um ato ‘violento’ de atirar um coquetel molotov contra a parede do teatro. Esta bomba caseira de nenhum efeito é foco de atenção da câmera e sua imagem, exibindo um fogo inofensivo, se torna (melo)dramática no telão do teatro.

Em momento algum sabemos a razão da revolução. É um movimento anacrônico. O povo e o seu desejo de se expressar, valendo por todas as causas. Em outra situação, eles reencenam imagens famosas de revoluções passadas com iconografias contemporâneas e de, quando em quando, distribuem doses de vodca para o público, o camarada. Tudo num espírito lúdico, um melange com humor. Faltando razão para a revolução, vemos certa banalização, causada diretamente pela cobertura da mídia, que exibe a revolução ao público, conforme informado nas telas, “ao vivo”. Tudo me fez lembrar os atuais protestos ocorrendo pelo Brasil e o poder da mídia em distorcer, dramatizar e banalizar os eventos, caso a caso.

É impossível negar: o GobSquad conseguiu uma união ativa entre o público. Fiz amizade com os espectadores a meu lado, um certo laissez faire dava margem aos integrantes da plateia para comentar um com o outro durante a apresentação, mantendo as luzes da casa acesas ao longo do tempo. Ao final, as cortinas do teatro se abrem para revelar o participante voluntário da rua, sozinho no meio de um palco enorme, erguendo uma bandeira. Novamente, como na imagem do fogo causado pelo coquetel molotov, uma certa banalização, pensando no esforço necessário para trazer somente uma pessoa para dentro do teatro. Invariavelmente, saí me sentindo parte de um acontecimento, de um momento; havia participado de um movimento, mesmo que fictício, que uniu um grupo de estranhos que tinha o teatro como seu território a defender.

Categorias: Blog. Tags: Andy Warhol, Bob Dylan, carrossel e Gob Squad.