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“O teatro deveria dar aos marginalizados uma voz.” Uma entrevista com Tim Crouch, criador de Eu, Malvolio

foto_maior_Malvolio_b“Somos geralmente submetidos à teorias de história baseadas nos ‘grandes homens’. A ideia de que a história pode ser explicada pelo impacto de grandes homens – líderes, governantes, reis, heróis. Eu acho que é bom entender que a história é feita de ‘pessoas com papel menor’.” Assim o ator, dramaturgo e diretor inglês Tim Crouch explica o seu interesse por personagens coadjuvantes de peças clássicas, uma espécie de obsessão que o levou a realizar uma série de espetáculos solo a partir dessas figuras. Depois do sucesso de I, Caliban; I, Peaseblossom e I, Banquo – criadas respectivamente a partir de personagens de A Tempestade, Sonho de Uma Noite de Verão e Macbeth, todas de Shakespeare –, ele concebeu I, Malvolio, criado a partir do mordomo ultrajado de Noite de Reis, do mesmo autor. O espetáculo é uma das atrações da sétima edição do TEMPO, com sessões nesta quinta e sexta, às 20h30, no Espaço Cultural Sérgio Porto. Em entrevista ao site do TEMPO, Crouch fala sobre o trabalho. Confira.

 

Você já criou outros espetáculos que dão protagonismo a personagens coadjuvantes de peças clássicas. Como surgiu essa ideia?

É algo bem dos ingleses isso de querer apoiar o coitado. Os poderosos podem cuidar de si mesmos. Eles não precisam de nossa ajuda. Imagino que seja essa uma das razões pelas quais eu prestei atenção nos personagens coadjuvantes, menores, de Shakespeare. Os protagonistas já têm suas peças! Então vamos focar nos pequenos.

 

Você já esteve em papéis coadjuvantes em montagens com outros atores, à sombra dos protagonistas?

Eu fui ator por muitos anos e, às vezes, atuava em pequenos papéis em peças de teatro. Se você tem um papel pequeno, mesmo assim tem que fazer o trabalho todo de entender a vida de seu personagem e sua relação com a peça. Mas você sente que nunca vai poder dizer tudo que gostaria de dizer! Você nunca tem a oportunidade de contar a história de seu personagem. Eu sempre fantasiava que tinha a chance de falar. Eu estava fazendo o Adivinho em Júlio César quando saí da escola de teatro. Eu poderia ter feito uma obra solo chamada Eu, Adivinho! Esse papel é extraordinário – mas sabemos nada sobre ele. Lembro do quanto queria explorar a experiência dele e lhe dedicar seu próprio show. Nos anos 90, eu estava em uma produção de Tom Stoppard, chamada Rosencrantz and Guildenstern are Dead. O Stoppard faz o mesmo tipo de coisa em sua peça – mas de forma bem diferente. Ele foca em dois personagens menores e faz de suas experiências o centro.

 

O que a opção por falar de personagens menores diz sobre a sua visão de mundo?

Somos geralmente submetidos à teorias de história baseadas nos “grandes homens”. A ideia de que a história pode ser explicada pelo impacto de grandes homens – líderes, governantes, reis, heróis. É possível olhas as peças de Shakespeare como sendo assim. Focam nos grandes personagens – Hamlet, Macbeth, Otelo, Júlio César, etc. Eu acho que é bom entender que a história é feita de “pessoas com papel menor”. Parece uma fala sobre democracia. Um colocação radical.

 

Como você escolhe os personagens que vai desenvolver nessas peças? Por que Malvolio foi escolhido?

Eu fiz Malvolio em uma produção de Noite de Reis, em Nova York, em 2001. A história dele é uma das grandes inacabadas. Sua última fala na peça de Shakespeare é: “Vou me vingar de todos vocês.” Mas aí a gente nunca descobre que vingança seria essa. Em minha peça, exploro o que poderia ser. Ele é tratado muito mal em Noite de Reis e, mesmo assim, todos rimos dele. Ele carrega vários temas – da crueldade à intolerância, da repressão ao alívio. Ele não aparece muito na peça, mas é provavelmente a presença mais memorável nela. Ele é ao mesmo tempo um herói trágico e um palhaço. Sempre que eu atuava em Noite de Reis, ficava imaginando o que Malvolio faria no final da peça. Em Eu, Malvolio, mostro uma das possibilidades e dou a ele a sua vingança! Também me interesso por ele porque é alguém que odeia o teatro, mas que está trancado dentro de uma peça. Isso se conecta com minhas obsessões teatrais – ter alguém no palco que desafie a razão de ser e proposta da presença do público. Ele nos força a pensar sobre por que você está lá, o que vocês espera de um lugar como esse. Com todos os personagens que escolho, tenho que ter uma conexão emocional com eles. Eu acho que Malvolio é o personagem que eu mais gosto. Eu amo ele. E também o odeio.

 

Os personagens que surgem nessas peças, mais do que coadjuvantes, são antagonistas, vilões, negligenciados, ultrajados. Essas peças são também uma forma de “fazer justiça” a eles?

Sim! Justiça para Malvolio. Justiça para Banquo. Justiça para Cinna, o poeta. Justiça para Caliban. Esses personagens todos passam por coisas difíceis em suas peças de origem. Ele acabam mortos ou abusados. Eu quis restaurá-los, fazê-los protagonistas nas histórias de suas vidas, dar a eles a chance de falar. Eu acho que o pobre poeta Cinna tinha apenas dezessete falas em Júlio César inteiro – uma ceninha na peça. Ele é confundido com outra pessoa e assassinado. Se fosse no século XXI, haveria uma campanha de Justiça para Cinna! Seus matadores seriam achados e processados, punidos. De certa forma, estou fazendo isso por ele através desse texto. O teatro deveria dar aos marginalizados uma voz. Shakespeare escreveu tanto sobre a realeza quanto sobre o cidadão comum. Ele escreveu sobre a sociedade como um todo. Ele escreveu sobre poder e abuso de poder. Eu quero dar voz às vítimas desses abusos.

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