Haeeshek
Este é um trabalho do egípcio Hassan El Geretly, uma coleção de contos, testemunhos e canções que relatam a história do Egito desde o início da Revolução de 2011. Não sendo um espetáculo completo, o diretor subiu ao palco junto com seus mais de 20 artistas para apresentar cada número, composto por contos morais e canções que buscam a paz e a identidade de uma nação ainda instável, procurando definição.
Construído com lindos números musicais, vê-se o orgulho destes artistas que aqui se mostram mais como civis orgulhosos, introduzidos pelos seus nomes verdadeiros e não como personagens. Um tipo de Comissão da Verdade e Reconciliação, mais parecido com um grupo de colegas contando histórias em volta de uma fogueira, é um trabalho que dissemina e ajuda a entender o que vem ocorrendo no Egito, com um olhar de cuidado para com a dor e a perda do passado, porém positivo, ao celebrar o que está por vir.
Même les Chevaliers Tombent Dans L’Oubli
Este é um espetáculo muito engenhoso e multimídia voltado para crianças e adolescentes, dirigido pelo francês Matthieu Roy, com um texto maravilhoso de Gustave Akakpo (do Togo), que fala sobre identidade, raça e integração. Ele conta a história de duas crianças, Mamadou e George, um menino preto e uma menina branca. Enquanto Mamadou quer se assimilar aos colegas da escola, George insiste que é preta como seu namorado e deseja mudar sua pele. Em casa ela é branca para seus pais, mas na escola ela usa uma pele preta e as outras crianças a vêem assim. Até que um dia uma sombra brincalhona vem para roubar ambas suas peles, branca e preta, deixando-a com uma pele cor-de-lua. Essa nova pele é invejada por todas as crianças, mas coloca George em perigo de desaparecer.
Muito bem interpretado e dirigido, o espetáculo conta com uma coreografia perfeitamente sincronizada para interagir com um trabalho de video-mapping maestralmente executado. Os personagens adultos são interpretados por imagens de projeção e muitos dos personagens crianças também, interagindo com os três atores reais. Fiquei de queixo caído em diversos pontos do espetáculo. Contemporâneo, dinâmico e animado, é um espetáculo feito para as crianças e adolescentes mas muito pertinente aos adultos também.
The Fountainhead
Baseado no homônimo clássico de Ayn Rand, o diretor holandês Ivo Van Hove traz a vida um épico do movimento Objetivista. São quatro horas de espetáculo que passam num piscar de olhos, onde o diretor questiona as escolhas do artista perante a sociedade contemporânea capitalista: o artista deve ouvir o público e os patronos e entregar obras que eles querem ver e garantir sucesso e prestígio ou o artista deve seguir o seu caminho e criar o que ele acredita deve ser apresentado ao público, arriscando jamais encontrar o reconhecimento, quem dirá o sucesso e a fama.
Contando a história de dois arquitetos, Howard Roark e Peter Keating, cada um optando por um caminho diferente a seguir, o espetáculo ocorre num palco enorme, com todos os cenários a mostra, cada cena ocorrendo em um canto do palco. Um telão de LCD no meio do palco ajuda o público a diferenciar os espaços e em diversos momentos apresentando close-ups de detalhes importantes e de desenhos arquitetônicos realizados na hora pelos atores. A história acompanha a ascendência a fama imediata daquele que optou atender os desejos do público e dos patronos e o duro e sofrido caminho escolhido por aquele que optou criar obras idealistas, criativas e revolucionárias, mas que eventualmente ganha ainda maior fama (e notoriedade).
O espetáculo, além de contar com dezenas de câmeras para close-ups de diversos cantos do palco, reproduzindo-os ao vivo no telão central, conta com ventiladores gigantes para reproduzir o colapso de um prédio, um grupo musical (Bl!ndman) ao fundo do palco que acompanha o espetáculo, janelas nas laterais dos palco expondo o trabalho dos operadores, e diversos outros elementos artísticos que ajudam a compreender a lógica de pensamento da famosa autora. Mas o mais importante mesmo é texto; quatros horas de diálogo intenso e envolvente. Ao final o público urrava. Certamente um dos pontos altos do festival, uma obra impressionante.
I Am
Dirigido pelo Neo-Zelandês Lemi Ponifasio, “I Am” foi a única decepção dentre os espetáculos que assisti. Estranhamente foi o único dos espetáculos selecionado para se apresentar no espaço de maior prestígio do festival, o Cour D’Honneur do Palácio dos Papas. O espetáculo propõe honrar aqueles que lutaram durante a Primeira Guerra Mundial (existem conflitos contemporâneos mais relevantes a se honrar), unindo textos de Heiner Müller e de Antonin Artaud (projetados de forma impossível de se ler nas paredes do Palácio), junto a cânticos e rezas vindas de ilhas do Oceano Pacífico (que certamente perderam a intenção na tradução ao Ocidente, se tornando momentos semi-cômicos se não fossem tão ridículos – bastante constrangedor).
Uma arrogância e pomposidade circulava o clima do espetáculo, o que não ajudou em forma alguma a simpatizar com intenção do diretor. Tiveram alguns detalhes frouxos, tal como um ator sem função alguma no topo das paredes do Palácio.
Para não dizer que era de todo ruim, uma cena plástica foi bastante encantadora – projetaram uma cachoeira caindo do alto das paredes do palácio até o palco, simplesmente lindo.
Notre Peur de N’Être
Um dos espetáculos mais poéticos/cinematográficos do festival, “Notre Peur de N’Être” do belga Fabrice Murgia, roubou meu coração, ganhando enorme destaque. O diretor, também autor, expõe, sem julgamento ou postulação, o isolamento de três indivíduos que, dentro de um mundo cada vez mais tecnológico, se distanciam do contato humano, optando (por escolha) pela relação com a Máquina. Acreditando que estamos passando por uma fase de transformação do comportamento humano, tal como foi a transição da tradição oral para a escrita e da escrita para a impressa, o diretor acredita que os atuais meios de comunicação permitem novas formas de contato, não necessariamente negativas. É isso que o diretor/autor implementa em seu espetáculo, acompanhando seus personagens de forma documental, descrevendo o dia-a-dia de cada um, seus comportamentos, ansiedades e esperanças.
Dividido em duas partes, a segunda metade observa situações de isolamento impostas, não realizadas por escolha própria, situações de isolamento onde o indivíduo se sente só mesmo rodeado de outras pessoas e a possibilidade de criar um universo próprio, paralelo, no qual fugir para uma utopia pessoal.
O espetáculo é impressionante pela forma poética que suas imagens são apresentadas ao público, cuja responsábilidade cai sobre a cenografia, iluminação e video-projeção, executadas com o maior primor. O palco se esconde por trás de uma tela rosco transluscente que serve diversos propósitos: 1) para isolar o público do palco num paralelo do isolamento do indivíduo, lembrando que a comunicação entre palco e plateia é uma relação de isolamento, onde se comunica porém sem ver um ao outro, sem relacionamento direto; 2) serve de projeção das imagens captadas pelas câmeras manuseadas pelo atores e nos permitindo espionar o mundo através de seus respectivos olhos; 3) para esconder o palco e o cenário, que ao início é iluminado pontualmente, criando um mundo de breu ao redor de cada personagem que aparece solitário sob a luz. Eventualmente o palco é revelado, como uma descoberta feita pelo observador, e a tela rosco é retirada para permitir uma iluminação e visão maior do espaço.
Esse é um daqueles espetáculos que é impossível não se emocionar com a beleza visual e poética da obra.