Criado por Cristina Flores e Leticia Monte a partir da tradução-tese de Ana Cristina Cesar para o conto Bliss, de Katherine Mansfield, Êxtase é um dos processos abertos ao público apresentados na sétima edição do TEMPO_FESTIVAL. O trabalho sugere leituras contemporâneas sobre o feminino e sobre a perspectiva da natureza na vida humana. “Pra simplificar, vamos dizer que nosso espetáculo vem sendo imaginado para funcionar feito um brinquedo efetivo de parque de diversões”, explicam ambas, nesta entrevista conjunta ao site do TEMPO. Confira.
Quais são as leituras contemporâneas que o espetáculo faz sobre o papel da mulher?
Vamos deixar Katherine Mansfield responder com essas palavras abaixo encontradas em seu diário, do ano de 1918, quando estava com 20 anos de idade: “Acabo de terminar a leitura de um livro de Elizabeth Robins, Come and Find me (Venha e me Encontre). Realmente, um livro brilhante, esplêndido; cria em mim uma tal sensação de poder! Sinto que agora realmente posso imaginar do que as mulheres serão capazes, no futuro. Até agora não tiveram sua oportunidade. Falar de nossos dias iluminados, de nosso país emancipado – pura tolice! Estamos firmemente presas com grilhões de escravidão que nós mesmas modelamos. Sim, agora percebo que nós os fizemos e temos de tirá-los. […] É a doutrina desesperadamente insípida, segundo a qual o amor é a única coisa no mundo que é ensinada e posta dentro das mulheres, de geração em geração, e que nos detém de um modo tão cruel. Devemos nos livrar desse demônio – e então virá a oportunidade de felicidade e libertação (MANSFIELD, 1996, p. 31).
E sobre a perspectiva da natureza na vida humana?
Sobre a natureza: o cenário de Êxtase, futuramente, será um penetrável vivo, uma mesa plantada com as apaixonantes Plantas Coração (da família das araceas, as plantas coração tem formato de coração e muitas formas e cores e tamanhos diferentes,você sabia que existem centenas de tipos de coração??). No conto de Mansfield ela descreve um jantar, na nossa montagem o publico fará o papel dos convidados e todos serão instruídos a se sentarem diante dessa mesa transformada em floresta de coração e iluminada por lâmpadas biológicas (que viabilizam o plantio indoor). Um ambiente natural tenso, porque as florestas são assustadoras,né, dá um medo de floresta, florestas daquelas perigosas dos contos de fadas, todas as florestas de todos os contos de fada são perigosíssimas, são inimigas das princesas e dos aventureiros, as florestas precisam ser vencidas, as florestas podem matar você no caminho
Quais são novas experiências e práticas cênicas que o processo busca?
Pra simplificar, vamos dizer que nosso espetáculo vem sendo imaginado para funcionar feito um brinquedo efetivo de parque de diversões, talvez seja isso, estamos tentando viabilizar algo emocionante e perigoso, utilizando todo um aparato tecnológico e construindo um conjunto de ações que levem o/a espectador/a à catarse, sem matar. Aquelas beiras que algumas obras te oferecem, ou mirante, um debruçar no abismo que gere de novo a pergunta mais recorrente das nossas vidas, só fazendo ela parecer inédita, “E agora o que vai acontecer?” Feito quando você lê a Katherine ou Ana Cristina César, dos livros fica aquela sensação de sangue na gengiva. Nosso espetáculo, futuramente, será composto por dois penetráveis que deverão ser ativados por um performer ao vivo. Nessa primeira etapa, no TEMPO, começaremos a experimentar um deles, o Penetrável Sonoro O público entrará num ambiente construído por vozes e sons. A gente quer só seu coração, feito o caçador da Branca de Neve.
Como as linguagens literária, audiovisual e teatral se encontram em cena?
No mundo contemporâneo as fronteiras entre as artes têm se tornado cada vez mais porosas. Tal fato motivou o crítico norte americano Michael Fried a nomear essa produção recente como “plena de literalidade e teatralidade”. Isso porque cada vez mais se via em obras de artistas visuais um efeito de plasticidade que reforçava no objeto uma dimensão altamente teatral e cenográfica, como encontramos nos “penetráveis” de Hélio Oiticica e nas “cells” de Louise Bourgeois, que inspiram conceitualmente este projeto. O espetáculo-instalação Êxtase parte da formulação crítica da existência de uma ligação entre a literalidade/teatralidade dos objetos da arte contemporânea com a escrita de Katherine Mansfield. Isso é observável no conto da autora por meio das imagens de invólucro, como o estojo do violino e o próprio corpo humano com sua pulsão de atravessamento do espaço. Vê-se, portanto, na obra dessa escritora um intenso desejo de percorrer, com as palavras, um conceito de espaço altamente envolvente e fenomenológico. Ana Cristina Cesar, grande poeta brasileira, tem uma produção vigorosa de ensaios literários ainda não muito conhecidos do público, e apresenta e discute a experiência da tradução e da recriação da linguagem a partir de sua versão do conto. Nós, artistas que trabalhamos nas fronteiras artísticas contemporâneas, propomos com esta obra a recriar e investigar a transposição entre linguagens: da literatura ao ato, ao som, à cena expandida.