Em que pese uma carreira que já passa de de vinte anos, com trabalhos variados no currículo, a imagem do ator Luis Lobianco tem sido mais frequentemente associada ao humor — seja por conta dos esquetes do grupo Porta dos Fundos ou pelos shows cômico-burlescos no Buraco da Lacraia, casa noturna no bairro carioca da Lapa. No ano passado, porém, ele foi irremediavelmente fisgado pela dramática história da transexual brasileira Gisberta Salce Junior, morta em 2006 na cidade do Porto, em Portugal, após ser torturada durante sete dias por catorze menores de idade. A partir deste trágico enredo, Lobianco concebeu o espetáculo “Gisberta”, um comovente monólogo com ele próprio em cena, texto de Rafael Souza-Ribeiro, direção de Renato Carrera e produção de Claudia Marques. Em curta temporada no CCBB Rio até o fim de abril, o espetáculo converteu-se em fenômeno de público, com ingressos evaporando com semanas de antecedência (ingressos AQUI).
Em entrevista ao TEMPO_CONTÍNUO, Lobianco falou sobre o processo de realização do espetáculo, a questão da transfobia no Brasil e a opção por não interpretar Gisberta na montagem — o que não o impediu de ser envolvido em uma polêmica ao ser acusado de usurpar um lugar que deveria ser de uma atriz transexual. “Convidamos algumas pessoas da militância (de movimentos pelos direitos de pessoas transexuais) do Rio para assistir ao espetáculo. Algumas pessoas já foram e, no fim, nos abraçamos e nos emocionamos juntos”, diz Lobianco.
Como Gisberta apareceu na sua vida?
Conheci Gisberta através da música “Balada de Gisberta”, do Pedro Abrunhosa, na interpretação da Maria Bethânia. Escutava sempre a canção na minha playlist, achava linda, mas foi num período de férias longe do Rio, em fevereiro de 2016, que eu ouvi com mais atenção e tive a curiosidade de saber quem era a mulher cantada ali. Abri o Google e surgiram dezenas de artigos sobre a vida e morte da Gisberta. Coincidentemente, o crime que interrompeu sua trajetória completava dez anos naquele dia. Imediatamente comecei uma pesquisa com objetivo teatral para a história.
Quando você descobriu a história da Gis, já havia esse desejo de se aventurar em um monólogo?
Fiquei conhecido no humor, mesmo tendo trabalhado com todos os gêneros desde o início da minha carreira, em 1994. Por isso, muita gente me perguntava quando eu faria o meu stand-up. Mas não é minha praia. Tenho amigos que fazem isso muito bem. Eu gosto de viver histórias e achar texturas de personagens. Por isso já buscava, antes de conhecer Gisberta, uma boa história que me deixasse doido pra contá-la. Independentemente de gênero teatral ou da quantidade de atores no palco. Estava há dois anos lendo textos e pesquisando direitos. Mas foi Gisberta que me fisgou.
Você pode falar um pouco sobre o núcleo da equipe que você reuniu?
“Gisberta” conta com uma equipe dos sonhos. Eu convidei a Claudia Marques, o Renato Carrera e o Rafael Souza-Ribeiro (respectivamente, produtora, diretor e autor do espetáculo) porque tinha certeza que trabalharia com pessoas tão apaixonadas pelo teatro quanto eu. Claudia trouxe a seriedade e estrutura que esse projeto merece. Colocou “Gisberta” como prioridade no seu escritório e resolvemos que bancaríamos juntos viver essa história na alegria, tristeza, riqueza e pobreza. Uma grande parceira! Renato é um amigo que eu sempre quis ter junto num projeto, mas estávamos sempre envolvidos com trabalhos diferentes. Dessa vez, eu pedi pra ele parar tudo que estava fazendo pra vir comigo e ele topou! Quase desmaiei de alegria! Ele trouxe a dose certa de crueldade e poesia pra essa peça, além do seu rigor técnico. Rafael era outro amigo com quem eu queria trabalhar faz tempo. Já lia suas crônicas com segundas intenções e observava o quanto seus textos provocavam reações incríveis nas pessoas. Mesmo conhecendo pouco sua produção teatral, decidi apostar no seu talento. E ele prontamente retribuiu emocionando a todos já nos primeiros encontros e também sendo super assíduo. Um luxo ter o autor na sala de ensaio constantemente. E assim, fui somando gente de quem sou muito fã à peça: Lúcio Zandonadi na trilha original, Simone Mazzer na preparação vocal, Gilda Midani no figurino, Núbia Barbosa, Thiago Sacramento. Também era importante deixar que a equipe trouxesse os seus aliados e tive grandes encontros: Daniel de Jesus, Mina Quental, Renato Machado, Marcia Rubim, Elisa Mendes.
A história da Gis é bastante desconhecida no Brasil, diferentemente de Portugal, onde ela virou um ícone. A que você atribui isso?
Em Portugal, Gisberta virou ícone na luta por direitos da comunidade LGBTQ. O caso Gisberta impulsionou um grande debate na sociedade portuguesa, e o país é hoje um dos mais seguros para uma pessoa transgênero viver. O Brasil está na contramão disso. Hoje somos o país que mais mata transexuais no mundo. Quase metade dos crimes de transfobia e homofobia acontece aqui. Os casos são tantos que não se tornam mais notícia de jornal, virou banalidade. A impunidade é tanta que os assassinos da travesti Dandara postaram o vídeo da sua tortura e morte na internet, certos de que aquilo não dá em nada. Esses monstros elegem políticos que legislam para o ódio. Disseminam a intolerância. O teatro vem no lugar da justiça que não garante essas vidas. É um encontro vivo de reflexão, transformação e empatia.
Como foi a etapa da pesquisa para o espetáculo?
Assim que conheci a história de Gisberta, fiz contato com jornalistas e militantes do movimento LGBTQ de Portugal e fui prontamente atendido nas minhas perguntas e também em algumas conferências virtuais. O segundo momento foi a aproximação com a família de Gisberta, que planejei com muito cuidado. Fui recebido num primeiro encontro na casa deles, em São Paulo, com muita confiança, memórias, fotos, cartas e documentos. Em seguida, o Rafael Souza-Ribeiro entrou na pesquisa junto comigo, voltamos a São Paulo para encontrar os parentes e estudamos o processo judicial do crime. Com o apoio de colaboradores como a Giowana Cambrone, advogada especializada nas questões LGBTQ, montamos uma linha do tempo de acontecimentos importantes nas leis para homossexuais e transexuais em Portugal e no Brasil, paralela à trajetória de Gisberta. Iniciamos a pesquisa dramatúrgica em sala de ensaio com todas as informações que tínhamos e, em dezembro de 2016, fui a Portugal percorrer os lugares onde Gisberta viveu e morreu. Lá, conversei com muitas pessoas e pesquisei personagens que seriam do universo dela.
Como a dramaturgia foi construída? O quão colaborativo foi o processo de confecção do texto, com essa ideia de trazer vozes diversas para falar da ausência da Gis?
Desde o convite a todos da equipe, eu já propunha um processo colaborativo. Estaríamos todos a par dos documentos que tínhamos acesso e montamos juntos as linhas cronológicas das nossas vidas, leis e fatos históricos em Brasil e Portugal e da vida de Gisberta. Na sala de ensaio, ensaiávamos em duas vias que se alimentavam: Rafael trazia textos que trabalhávamos transformando em encenação e, paralelamente, eu improvisava falas e personagens que o Rafael registrava e organizava como texto. Tudo sendo orquestrado pelo Renato Carrera que, além dos personagens, buscava conosco a figura do contador da história, a voz do ator Luis Lobianco — o artista da noite, a linha tênue entre o cômico e trágico. Os personagens reais dão conta da primeira metade da vida da Gis junto à família no Brasil. Os personagens portugueses fictícios são uma visão de quem ela foi em Portugal, o segundo momento da sua vida, quando há poucos relatos sobre ela, senão o que a própria escrevia para a família. Quando tínhamos a estrutura de personagens e contador esboçada, entrou a camada musical, que fala de Gisberta pelas canções das suas brincadeiras da infância e depois como artista de boate. E também os arranjos originais pra instrumento e voz compostos pelo Lúcio e executados em trio de piano, flauta e clarinete por ele, Danielly Souza e Rafael Bezerra.
Você poderia falar especificamente sobre a opção de não interpretar a Gis?
Não era um desejo artístico desde antes de conhecer a história de Gisberta. Eu me imaginava contando, cantando ou dizendo poesia. Acabou que, com a história da Gis, esse formato coube muito bem. De qualquer forma, eu estava disponível pra qualquer mudança de planos. Se a história exigisse que eu vivesse a Gisberta, eu estaria disponível para isso.
Antes mesmo da estreia, o espetáculo foi arrastado para uma polêmica envolvendo militantes transgênero, que levou você a escrever um manifesto nas redes sociais. O que aconteceu e como tem sido a sua relação com esse movimento?
Antes da estreia, um grupo de militantes transgênero questionou o fato de Gisbeta ser feita por um ator cisgênero e não por uma atriz transgênero. Havia uma ideia equivocada de que alguém teria me escalado, quando na verdade o projeto foi idealizado por mim justamente porque, em dez anos desde a morte da Gisberta, ninguém de nenhum gênero criou um projeto de teatro profissional pra contar essa história urgente. Fui lá e fiz. Havia também um entendimento precipitado de que eu interpretaria a personagem Gisberta. O que não acontece. Nos comentários nas redes sociais, cheguei a ser acusado de fazer “black face trans” e de estar assassinando Gisberta novamente. A falta de conhecimento sobre o que é o “black face” e ser acusado de “assassino”, a princípio, me desanimaram em começar qualquer diálogo. De qualquer forma, aceitei a reflexão e, a partir dela, tenho também as minhas questões. O espaço imaculado e milenar do teatro, berço da civilização ocidental, território da provocação, transformação e reflexão, deve ceder a esse tipo de questão, mesmo quando sabemos que ele tem sido o maior debatedor sobre identidade durante toda a sua existência? A representatividade que a militância transgênero reivindica, com toda razão, está mesmo sendo capturada por atores que lidam com o subjetivo e estudam a vida inteira para se esvaziarem de si ou por gente real, da vida real, exercendo seus papéis sociais imutáveis? A classe artística não deveria se posicionar para que não cheguemos no dia em que Lobianco só possa interpretar Lobianco, Fernanda Montenegro só possa interpretar senhoras cariocas e mulheres trans só possam interpretar mulheres trans? O lugar de fala e protagonismo da militância não está transformando tudo que não seja si próprio em antagonista? Não seria mais produtivo aderir as vozes artísticas e acadêmicas, mesmo cis gênero, a essa luta como gente amiga ou coadjuvantes? A militância fala em revolução, mas que revolução pode ser feita sem mobilização de vários grupos? Me parece que há muita energia desperdiçada contra gente aliada e amiga, enquanto forças ultraconservadoras só se fortalecem e não se combatem entre si. Esses, sim, os grandes algozes da comunidade LGBTQ, não gente amiga do teatro como eu. Convidamos algumas pessoas da militância do Rio para assistir ao espetáculo e temos cotas de ingressos para ONGs LGBTQ. Algumas pessoas desses grupos já foram e, no fim, nos abraçamos e nos emocionamos juntos. Ainda teremos alguns grupos conosco até o fim da temporada. A maioria das pessoas transgênero que vai ver Gisberta chega com coração aberto e se comove muito. Durante a pesquisa, tivemos a colaboração da Giowana Cambrone, mulher transgênero, advogada e professora da FACHA no Rio de Janeiro.
O repórter Luiz Felipe Reis, do Globo, escreveu em uma matéria que o próprio espetáculo é, em si, transgênero, porque se espraia por diversos formatos. Você poderia falar um pouco sobre essa sobreposição de gêneros e elementos na peça?
O Luiz criou essa imagem interessante porque a peça faz rir e chorar. O público ri comigo quando, num primeiro momento, crio a empatia necessária pra gente perceber que todos nascemos Gisbertas, e Gisberta era igual a todos nós: as histórias engraçadas da nossa infância, intimidades minhas que compartilho e doces memórias da família da Gis. São os momentos em que não quis negar a minha veia cômica, pela qual sou bastante conhecido, não me interessava negar a mim mesmo. O segundo momento é Gisberta pela noite. Trago os personagens de cabaré que contam histórias de riso irônico e canto as músicas melancólicas das madrugadas. A terceira via é trágica, o fim anunciado se aproximando, a dureza do trato oficial, a voz de uma sociedade que exclui e a ausência absoluta de poesia. Assumo aqui um tom sombrio, não poderíamos amenizar os fatos. Todas essas nuances são atravessadas por música, poesia e imagens de luz, cenário e figurino que criam dor e beleza.
Você tem uma longa estrada no teatro, mas ficou especialmente conhecido nos últimos tempos pela comédia e pelo humor. À parte a relevância de contar a história da Gisberta, do ponto de vista do desenvolvimento do seu trabalho de ator, o que esse espetáculo representou para você?
Sempre busquei o riso que emociona e o drama que faz rir. Um equilíbrio do humano que eu nunca pretendi encontrar tão fácil. Gisberta é o momento mais próximo disso que eu já vivi. Com 35 anos de idade e 23 anos de teatro, me sinto feliz, com as pessoas certas e contando a melhor história que poderia contar nesse momento. Existe o mercado-mídia e parte da classe teatral que tenta te rotular e te enquadrar em gêneros. Mas estou ficando bom em escapar das etiquetas! A felicidade que sinto agora me dá uma segurança enorme de colocar cada vez mais energia em trabalhos com a mesma verdade que a peça “Gisberta” traz.
[foto: Elisa Mendes]