Uma tragédia.
O acidente com o voo da Avianca que partia de Recife para o Rio de Janeiro no dia 21 de outubro deixa dezenas de feridos e ao menos cinco mortos. Os corpos já identificados de Adassa Martins, Caroline Helena, Diogo Liberano, Flávia Naves e Natássia Vello estão sendo velados no teatro Gláucio Gill, mesmo local onde os cinco comemorariam nesse dia 23 de outubro os cinco anos de existência do seu grupo de teatro. As portas do Gláucio Gill se abrem hoje para que familiares e amigos possam se despedir dos artistas. Esse foi o desfecho trágico de uma jovem e promissora companhia de teatro.
Do que acabo de escrever nem tudo é mentira (e, ai de mim, ainda existe a possibilidade de ser tudo verdade). Estou nesse exato momento num voo da Avianca que acaba de sair de Recife em direção ao Rio de Janeiro. Os Inomináveis estão aqui ao meu lado, Natássia do meu lado esquerdo, seguida por Diogo, Helena e Adassa. Estamos retornando pra casa depois da apresentação da peça Vazio é o que não falta, Miranda no festival Trema! dos meninos do grupo Magiluth.
É provável que o avião não caia, é provável, as chances são inúmeras, aterrissaremos com tranquilidade e seguiremos tocando a vida como estava previsto. Comemoraremos os cinco anos de existência da companhia daqui a dois dias no teatro Gláucio Gill e tudo estará dentro dos conformes. Amigos, parentes e desconhecidos irão nos parabenizar, ficaremos felizes, tiraremos fotos, brindaremos e a vida seguirá, como sempre.
Uma pena.
Lamento não o tédio que a previsibilidade dos acontecimentos é capaz de suscitar, lamento perder a oportunidade de ser imortalizada como uma artista, artista daquele grupo, o Teatro Inominável, tão bacana, tão interessante, tão promissor… já ouço os comentários em várias vozes: eu ia sair de Juiz de Fora para fazer uma oficina durante a ocupação deles, não acredito no que aconteceu; eu tenho certeza que aquele menino prodígio, o Liberano, ganharia o prêmio shell esse ano; eu já não sei, mas que essa companhia iria longe ela iria; eles tinham pesquisas interessantes, tenho certeza que contribuiriam para alavancar a cena teatral carioca; aquela peça, Sinfonia Sonho, foi ela a causadora disso tudo; premonitória, a tal peça, eu diria.
Não que eu deseje a morte, nada disso, está longe de ser, só achei divertido (pra alguns de mau gosto) pensar nas possibilidades dramatúrgicas que uma tragédia como essa poderia provocar. É provável que o avião não caia, teremos então que seguir, teria sido mais fácil (e disso eu tenho certeza) ter ficado ali, congelada naquele ponto, imortalizada na possibilidade do que viria a ser, do que viria a se tornar esses artistas e essa companhia de teatro.
Se o avião não cair teremos que seguir (e é aí que a porca torce o rabo) perseguindo com afinco tudo aquilo que desejamos, buscando nos tornar aquilo que somos, ou melhor, que desejamos ser. Teremos que lutar pra fazer valer nossas pretensões que maior se tornam quanto mais agregadores e cheios de beleza pretendemos ser. E queremos sim ser muita coisa, e desejamos sim continuar nossa estrada percorrendo as ruas da cidade e retornando aos palcos eletrizados pelo encontro.
Teremos que continuar tentando nos livrar do que nos impede de estar juntos, conectados e atentos ao outro, às diferenças, às transformações sociais e políticas da nossa cidade, do nosso país. Teremos que continuar lutando por um mundo melhor, por relações sociais mais justas e acordos mais democráticos. Teremos que continuar lutando pela nossa arte que seja livre de egos e repleta de cuidado. Terei eu que continuar lidando e convivendo com a insuportável beleza da Natássia, o talento elegante da Adassa, a eloquência e genialidade do Diogo, a inteligência e perspicácia da Helena. Terei eu que lidar com o amor que sinto por cada um deles, amor que me agiganta e consola, mas que também fere e amedronta.
Teria sido mais fácil, se a tal tragédia tivesse acontecido, mas é provável, Inomináveis, que teremos que seguir. Então estou aqui, estendendo a minha mão a vocês com coragem pra dizer que sinto orgulho do que conquistamos. Que vocês são os responsáveis por dar sentido a minha vida e também os responsáveis pelas minhas mais sinceras alegrias. Estou aqui, colocando à prova os nossos sonhos a fim de torná-los realidade.
Enquanto estivermos juntos vamos fazer bonito pra daqui a alguns bons anos, quando enfim nos despedirmos (da companhia ou da vida), podermos olhar pra trás com orgulho de quem fez o que deveria ser feito.
Da janela do avião, observo o infinito. Fecho os olhos, agradeço, faço um pedido e sopro as velas.