TRADUZIR

UMA PEÇA SOBRE AMADORES

(texto escrito por Carolina Casarin, figurinista, mestre em Letras pela UFRJ: carolcasarin@gmail.com | @carolinacasarin)

Alguém já disse que o livro Fragmentos de um discurso amoroso, de Roland Barthes, é um best-seller. E como tal, parece ter se tornado um ponto de fuga, literalmente aquele ponto que o olho procura no quadro, um infinito no horizonte, quando se trata de amor. Por ser tão verdadeiro – a começar pelo título, já que não existe modo mais real de se falar do amor do que por fragmentos – é impossível não se reconhecer em alguma das situações enunciadas por Barthes. “Drama”, “encontro”, “exílio”, “eu-te-amo”. Fragmentos de um discurso amoroso é o livro de todos os apaixonados, e também o livro dos que amam, dos que deixaram de amar, dos que sofrem por amor. É um pouco o livro de todos nós. Por isso é tão fácil se apropriar desse texto de Roland Barthes, porque ele em si já é uma apropriação dos sentimentos que o amor desperta. A peça Trabalhos de amores quase perdidos, escrita e dirigida por Pedro Brício, em muitos momentos me lembrou o Fragmentos de um discurso amoroso. Além de falarem sobre o mesmo tema, as duas obras partem de um conceito caro a Barthes: o amador. No livro e na peça “é pois um amante que fala e que diz”.

Branca Messina, João Velho, Lucia Bronstein e Pedro Henrique Monteiro representam quatro jovens envolvidos em relações amorosas. Mariana (Lucia) e João (Pedro Henrique) são namorados, e amigos de Marcos (João Velho), ex-namorado de Mariana, que deseja escrever a peça a que assistimos. Marcos têm algumas namoradas, todas representadas por Branca Messina. Apesar de também optar por uma linguagem fragmentada, a peça é bastante clara, dividida em dois atos. Casamento, separação, trabalho, viagem, acaso, caixas vazias, abajur, cinzeiros, sofá, lata de tinta, revelação.  Os personagens têm que lidar com situações, emoções, objetos que fazem parte da realidade daqueles que estão ou já estiveram em relações amorosas. No cenário (assinado por Aurora dos Campos) objetos cotidianos estão dispostos de modo exagerado: são luminárias espalhadas e caixas de papelão formando paredes. Um modo de enfatizar o drama e o dramalhão de que toda relação é feita. Quando no segundo ato a cortina de veludo azul e pesada cai, e o público passa a ver um sofá branco, latas de tinta, plásticos pretos e uma porta, o tapete embaixo do sofá lembra um quadro de Mondrian: geométrico, azul, vermelho e amarelo. E a referência a Espanha presente na peça, há certa ambiência que remete ao universo de Pedro Almodóvar. Ao exagero, à intensidade. Uma intensidade cool, é bom dizer. Um exagero moderado, se é que isso existe. Porque a peça não é um dramalhão, mas aponta para o pouco (ou muito) de dramalhão que toda relação amorosa tem; e o pouco de triste; o pouco de saudade; o pouco de alegria. A peça passeia pelos sentimentos, assim como o livro de Barthes.

Talvez a intensidade retratada no cenário e na luz (iluminação de Tomás Ribas) não tenha sido pensada para o figurino (Luiza Marcier). É certo que Trabalhos de amores quase perdidos tem um compromisso com o cotidiano, com as histórias banais, com a história de todos nós. Ao mesmo tempo, e isso o cenário conseguiu captar muito bem, há também na peça um movimento contrário ao cotidiano. “Deixar os dias menos comuns: esse é o desejo”, diz Mariana. A opção por roupas absolutamente cotidianas destoou um pouco do cenário. O figurino das mulheres estava bonito, sendo a roupa de Mariana a mais teatral. É uma referência ao figurino de Jeanne Moreau no filme Jules et Jim, citado na peça. No segundo ato o vestido da espanhola, preto estrelado, funciona bem. Mas como Trabalhos é toda muito bem construída, parece que o figurino não acompanha a ambiência do espetáculo.

Sendo “uma peça sobre amadores”, como o próprio diretor afirma, Trabalhos de amores quase perdidos atinge em cheio o público espelhado em cena. Me atingiu. Nem tudo está perdido. Mesmo amores perdidos dão boas peças. Obrigada TEMPO_FESTIVAL.

Categorias: Blog. Tags: Aurora dos Campos, Branca Messina, Carolina Casarin, João Velho, Lucia Bronstein, Luiza Marcier, Mondrian, Pedro Almodóvar, Pedro Brício, Pedro Henrique Monteiro, Roland Barthes e Tomás Ribas.