De junho a novembro deste ano, acontece na Itália um dos mais importantes – certamente o mais proeminente – eventos do artworld: a Bienal de Veneza. Em sua 55ª edição, as Olimpíadas das Artes, como costumam chamar carinhosamente seus admiradores, têm como recorte temático as cosmologias pessoais e as visões criativas de artistas e não-artistas, reunidas sob o título “Il Palazzo Enciclopedico“.
O palácio enciclopédico foi um projeto concebido pelo artista ítalo-americano Marino Auriti, em 16 de novembro de 1955. Como o próprio nome indica, trata-se de um enorme edifício idealizado para ser a sede do conhecimento, reunindo todas as descobertas da raça humana, da roda ao satélite. Nada mais utópico, diga-se de passagem. Não à toa, o projeto de Auriti permaneceu como tal até que Massimiliano Gioni, o mais jovem curador em 110 anos de história da Bienal de Veneza, elegesse tal palácio como eixo conceitual de sua participação.
Apesar de jovem, Gioni está bem longe de ser inexperiente. Chefe curatorial do New Museum, em Manhattan, ele já foi assistente pessoal do artista italiano Maurizio Cattelan, tendo sido responsável também pela curadoria de outras Bienais, como a itinerante Bienal Manifesta (2004), a Bienal de Berlim (2006, em parceria com Cattelan e Ali Subotnick) e também a Bienal de Gwangju (Coreia do Sul, 2010). Em seu novo desafio, Gioni parte da audaciosa tarefa de recuperar o poder das imagens em um mundo superpovoado por elas.
Para isso, o curador armou-se de potentes armas teóricas, em especial, as linhas de pensamento de três destacados historiadores da arte: o francês Georges Didi-Huberman (que esteve recentemente no Brasil, para um Congresso no MAR), o alemão Hans Belting e o norte-americano W.J.T. Mitchell. Com abordagens absolutamente distintas, as investigações destes intelectuais aproximam-se na tentativa de rever o estatuto da imagem na contemporaneidade. Partindo desta interseção, Gioni, que não possui trajetória acadêmica apesar de possuir formação em história da arte, constrói os pilares de seu Palácio Veneziano.
O resultado desta investida é um zigzag de sonhos e visões. Composta por 158 artistas, quase o dobro das quantidades das duas edições anteriores, e 88 pavilhões nacionais, esta edição da Bienal de Veneza coloca lado a lado trabalhos de criadores reconhecidos, iniciantes e outsiders. Do primeiro grupo, estão nomes como Bruce Nauman, Walter de Maria, Dieter Roth, Harun Farocki, Steve McQueen, Carl Andre, Peter Fischli e David Weiss. Dentre os artistas que protagonizam a cena artística atual, tem-se Ryan Trecartin, Rosemarie Trockel, Neil Beloufa e a excelente dupla João Maria Gusmão e Pedro Paiva.
O último e inusitado grupo é composto por indivíduos que, em suas trajetórias pessoais e profissionais, deram especial atenção às imagens, independente dos valores estilísticos, normativos e financeiros do sistema da arte. Os desenhos do livro vermelho do psicólogo Carl Gustav Jung, as pinturas do prussiano auto-condecorado doutor e líder religioso Friedrich Schröder-Sonnenster e da medium sueca Hilma Af Klimt, bem como a coleção de pedras do teórico da Antroposofia Rudolf Steiner e os artefatos do esquizofrênico brasileiro Arthur Bispo do Rosário e do autista japonês Shinichi Sawada ampliam o escopo da arte, fazendo-a repousar no domínio ilimitado do imaginário.
Segundo estimativas, todo este gigantesco volume de imagens que constitui a enciclopédia veneziana irá atrair 500.000 visitantes até o dia 24 de novembro, data de encerramento do evento. Além da mostra de artes visuais, a Bienal apresenta exposições e festivais de música, teatro, arquitetura e cinema. A grandiosidade do projeto, no entanto, não deve ser confundida com um desejo universalizante. Gioni antecipa-se aos equívocos, deixando claro que a Bienal de Veneza deve ser encarada como uma arquitetura mental tão fantástica quanto delirante. De fato, o foco na enciclopédia lança luz pra própria natureza da Bienal, cujo objetivo é a concentração de poéticas de várias e inúmeras partes do mundo. É possível, claro, criticar tal formato, a exemplo do que ocorreu com a última Bienal de São Paulo, com perspectiva curatorial semelhante. Nas palavras de Angélica de Moraes, a Bienal paulista apresentava “uma lógica hirta de colecionador de borboletas”. Para ela, “Classificar é utopia dos enciclopedistas do século 18. Não funciona mais.”
Gioni, por sua vez, parece levar em conta tal consideração ao criar um evento que celebra exceções e excentricidades, ao invés da sistematização totalizante. Se tal ampliação dissolve as questões estéticas ou as subvaloriza, é o visitante quem vai concluir. De duas coisas não restam dúvidas: é impossível possuir todo o conhecimento, assim como é sempre possível obter conhecimento daquilo que não se possui.