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TEMPO EM NEW YORK #4: HAMLET E A LIBERDADE

Ganesha e Hitler dividiram o debate político com três espetáculos do Under The Radar. De diferentes nacionalidades, o trio comentado a seguir trouxe necessárias articulações entre política e arte.

O ponto de partida do work in progress, Arguendo, da companhia norte-americana Elevator Repair Service, é uma proibição jurídica originada no Estado da Indiana em 1991 e, em seguida, adotada nacionalmente. No caso conhecido como Barnes v. Glen Theatre, Inc, duas casas noturnas que ofereciam diversão para adultos (isto é, shows de strip-tease) foram impedidas de prestar seus serviços à comunidade. Pois, de acordo com os bons moços de Indiana, a total nudez das stripers reforçaria a promoção de comportamentos imorais e indecentes. Para que as danças sensuais fossem autorizadas, as mulheres deveriam utilizar obrigatoriamente lingeries como calcinhas de fio dental (g-strings) e protetores de mamilos (pasties).

Arguendo, jargão jurídico apropriado do latim, é um recurso retórico que significa “na hipótese de…” ou “considerando que…”. Como título do espetáculo dirigido por John Collins, ele comprova o interesse, por parte da companhia norte-americana, na teatralidade inerente ao ambiente legislativo. E, de fato, o work in progress faz do palco uma corte e, nele, fazem desfilar os artifícios discursivos de defesa e de acusação. Para isso, eles exploram as já estereotipadas figuras do juiz, do advogado, deixando-se contaminar por uma excessiva verborragia que, por vezes, parece se esgotar.  O estereótipo da dançarina, no entanto, surge pontualmente em duas cenas (a de abertura e outra de encerramento) e, talvez, a investigação deste outro universo traria equílibrio à balança. No entanto, o processo se mostra válido ao relacionar nudez e conduta: a nudez em si pode ser considerada uma forma de discurso e, arguendo este fato, quais seriam seus extremos? Afinal de contas, quais são os limites da liberdade de expressão?

Liberdade de expressão é justamente o que falta em Belarus, a última ditadura europeia sob o governo, desde 1994, de Alexander Lukashenko. Com economia estatal, esta “república” sem saída para o mar adota medidas de opressão como a pena de morte e a detenção de opositores, com direito ainda a uma agência KGB (quem disse que ela estava aposentada?) de serviços secretos.

Este é o pano de fundo de Minsk 2011: A Reply to Kathy Acker, de Vladimir Shcherban. Minsk é a capital de Belarus e Kathy Acker, uma escritora punk americana. No espetáculo, todo falado na língua nativa por atores que são também exilados políticos, cenas de amor e sexo se entrelaçam às representações de opressões e ódio. Isto porquê a obra do grupo Belarus Free Theatre possui também um arguendo: que cicatrizes são sexys. Partindo desta premissa, os jovens atores revivem a sua terra natal, fazendo do teatro um verdadeiro local para o exercício da liberdade. O tablado, cheio de artifícios e artefatos, acolhe os expatriados, tornando-se a sua nação. Este é o grande mérito da obra.

Last but not least, o grupo de teatro de Leev, do Irã, apresentou a sua adaptação do clássico de William Shakespeare, sob o título Hamlet, Príncipe da Mágoa. O texto, famoso por sua longa extensão, é sintetizado em uma versão de intensos quarenta minutos. Tudo se resume a um monólogo, onde o ator Afshin Hashemi, sentado diante de uma mesa, manipula um conjunto de objetos (na maioria, brinquedos infantis) guardados em uma mala.

Neste caso, Hamlet, dormindo sobre a mesa, inicia sua trajetória sendo acordado por uma forte luz que incide sobre seu rosto. Ele então, utilizando durante todo o tempo a segunda pessoa do singular (Você), passa a contar a história de uma viagem de veraneio com a família e amigos. Trata-se de uma tentativa de escapar dos problemas encontrados em casa, conforme o protagonista mesmo afirma. No meio do caminho, um outdoor anuncia: “Ser ou não ser?”.

Conforme vai descrevendo a ação no idioma persa, este Hamlet iraniano retira os objetos da mala, tornando-os atores de seu pequeno teatro: um dinossauro de plástico representa o tio, um leão em miniatura, o pai; Ofélia, por sua vez, é uma boneca Barbie com longas madeixas. De modo intermitente, seu celular toca: sua mãe o convoca para seu casamento, obrigando-o a retornar.

No entanto, Hamlet não pode retornar sem levar em conta a revelação que seu pai – um leão de plástico – lhe fez: que fora assassinado pelos noivos. Ou melhor, ele pode voltar do passeio, sem, no entanto, voltar no tempo. Diante desta impossibilidade, ele decide planejar um modo de confirmar a notícia do pai. Não mais o teatro, mas esculturas. No único momento em que, decidido, Hamlet levanta para concretizar o plano, o protagonista cambaleia, expondo ao público outra revelação: três tiros nas costas. Hamlet está morto.

Toda montagem do cidadão mais conhecido da Dinamarca irá, invariavelmente, ser um fragmento de Hamlet. Com o espetáculo escrito por Mohammad Charmshir e dirigido por Mohammad Aghebati não poderia ser diferente. Neste caso, fazer Hamlet reviver sua história por meio de brinquedos produz dois efeitos: reforça a teatralidade, em uma rica atuação de Hashemi; por outro lado, torna o protagonista um adulto que não soube crescer, uma criança anacrônica. Sendo assim, toda a complexidade de Hamlet se esvai na pirraça infantil de um filho magoado.

O que significa, no entanto, Hamlet estar morto? Que a dinamarca não pode mais ser salva? Que o Teatro, munido de seus artifícios, não pode mais revelar a verdade? O Belarus Free Theatre e a Elevator Repair Service concordariam? Está aberta a sessão!

Categorias: Blog. Tags: Afshin Hashemi, carrossel, Elevator Repair Service, John Collins, Kathy Acker, Mohammad Aghebati, Mohammad Charmshir, Under The Radar Festival, Vladimir Shcherban e William Shakespeare.