Imagine a seguinte situação: em pleno festival de teatro norte-americano, você vai ver uma peça de um diretor húngaro-holandês. Quando o espetáculo começa, você se depara com uma família de chineses que não fala outra língua a não ser mandarim. A peça, portanto, é toda falada no idioma chinês, sem haver nenhuma espécie de tradução! Presente de grego para inglês ver? Muito pelo contrário: incrível, no bom e velho português.
A fórmula de C’est du Chinois, de Edit Kaldor, é simples: a família em questão realiza uma demonstração de seu método de ensino de mandarim. A plateia se transforma em turma de alunos, e a situação teatral, em aula. A partir disso, os cinco chineses, por um processo de repetição e mímica, ensinam ao público palavras básicas de sua língua natal. Para isso, eles definem um quadrado cinza no centro do palco, onde ocorrem as demonstrações. Após a demonstração de uma ação (por exemplo, comer), um dos atores enuncia a palavra chinesa associada. Em seguida, o mesmo dá o sinal – um apito – autorizando a repetição da palavra pelos alunos (nós, a plateia). Por meio deste roteiro, neste primeiro momento do espetáculo, o humor toma conta ao vermos os orientais realizarem ações que nos façam entender o que é Tofu, Feng Shui e Hen Hao (Muito bom!).
Conforme o espetáculo se desenrola, passamos a compreender não apenas a língua, mas as relações entre os cinco indivíduos que estão diante de nós. Passo-a-passo, somos levados das palavras isoladas à combinação entre elas e, com isso, aos vínculos entre os chineses. Iniciantes em mandarim, logo temos avançada observação destas “estruturas elementares de parentesco” (retomando aqui o famoso livro de Lévi-Strauss) que permeiam as sociedades (ocidentais mas também orientais). Mãe e filho, pai e filha, irmãos, marido e mulher. A compreensão destas palavras conduz, inevitavelmente, ao entendimento dos complexos vínculos que elas engendram.
A lição não acaba e, por meio das relações de parentesco, nos deparamos, por metonímia, com um retrato sócio-econômico da China contemporânea. A questão do trabalho e a necessidade do dinheiro são, como era de esperar, os assuntos mais sobressalentes. Pois as palavras “dinheiro” e “trabalho” jamais podem ser ingenua ou inocentemente proferidas. E é aqui que entra o Brasil. Por meio de um idioma absolutamente distinto ao nosso, poderíamos esperar que a situação seguisse o mesmo rumo, isto é, fosse exótica. Ledo engano. Por mais que as línguas apresentem uma enorme diversidade, a situação histórica (assim como as relações de parentesco) são muito próximas. De fato, ver uma família de chineses tomar o palco com inúmeras sacolas de produtos industrializados (enormes pilhas de chocolate Hershey’s e DVD’s) não está muito distante da realidade brasileira. Ou ainda, a iniciativa empreendedora do trabalho informal (o que os chineses vendem é um método de ensino). E mais essa: o gosto homogêneo e massificado (coca-cola, chocolate, DVD). De fato, as lições não são apenas de mandarim, mas da língua global do capitalismo tardio.
O espelhamento proposto por C’est du Chinois, capaz de levantar poderosas reflexões, seria muito bem-vindo na cidade maravilhosa em tempos de grandes empreendimentos. De fato, sob uma perspectiva europeia (o que não quer dizer eurocêntrica), o espetáculo questiona, de modo sutil, o alto desempenho econômico de países, como China e Brasil, duas das nações que compõem os BRIC Countries (as outras duas são Rússia e Índia). De modo sofisticado, a obra de Kaldor parece perguntar: em que pilares se assentam o crescimento econômico? Sociais, culturais? Ou puramente econômicos?
Mais acima, o francês Lévi-Strauss (que, segundo Caetano, detestou a Baía de Guanabara) foi mencionado ao se falar sobre a relação entre língua e parentesco. De fato, C’est du Chinois é um espetáculo estruturalista. Se o antropólogo tivesse assistido a este espetáculo, ele diria, das duas, uma: “It’s so me!” ou “Hen Hao!”.