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TEMPO EM NEW YORK #2: Autômatos ou humanos?

Mistura: esta é a palavra que dá o tom de dois espetáculos do Under The Radar 2013, o work in progress La Divina Caricatura e o multimídia 2 Dimensional Life of Her.

Criado por Fleur Elise Noble, o australiano 2 Dimensional Life of Her (algo como “A vida bidimensional dela”) suprime a distância entre criador e criatura, colocando em cena uma mulher contracenando com bonecos e projeções. O figurino nos sugere imediatamente que a figura feminina é uma dona de casa. O local, no entanto, é menos uma habitação familiar e mais um híbrido de ateliê, set de filmagem e página em branco. Estruturada por enormes recortes de papel ao fundo e povoada por fragmentos de páginas rasgadas e amassadas, esta peculiar casa mostra que a sua dona não é a mulher, mas o processo criativo.

Com um longo vestido, lenço na cabeça e uma vassoura, a protagonista de “2 dimensional” inicia a peça dando uma faxina no local. Ela logo é surpreendida com a presença de bonecos que surgem pelas páginas em branco que povoam o espaço. Os títeres (mas também a protagonista na maior parte da peça) assumem um tom fantasmagórico ao se apresentarem ao público sempre por meio de projeções. Nas telas, mulher e boneco invertem as suas posições. Neste jogo, em muitos momentos, o ser humano se torna o boneco: quem o comanda são as criaturas que criou.

Um esclarecimento: “2 dimensional” não aposta em um antagonismo entre criador e criatura, em algo que poderia situar esta experiência como mais uma variação da velha disputa por poder e autoridade entre dominadores e dominados. Sob outra perspectiva (e talvez seja aqui onde devamos encontrar a graça do espetáculo), a inversão parece focalizar a relação ambígua e complexa do artista com a sua obra. Sendo assim, em um determinado momento do processo de criação, quem comanda é o criador (como no final da peça, onde a figura humana é responsável pela direção da cena). Em outros momentos, os títeres manipulam o corpo humano, controlando seus movimentos e ações.

Nesse sentido, a vida “bidimensional” da protagonista se refere à dupla condição da criação. Ela parece querer dizer: “Criar é ser criado”. Duas dimensões da produção artística que também são camadas que se superpõem – não é à toa que o espetáculo, com um pouco mais de meia hora de duração, aposta no surgimento das figuras do interior das folhas de papel. O processo emerge da tela ou do fragmento de papel. A bidimensionalidade da folha não é, com isso, uma limitação, mas contingência. Ela revela a espessura da criação.

La Divina Caricatura, work in progress de Lee Breuer, também coloca bonecos e humanos lado a lado. Para aqueles pecadores que não conhecem o trabalho do múltiplo Breuer, vamos lá. Ele é um dos fundadores da Mabou Mines, companhia teatral norte-americana fundada em 1970 e amplamente reconhecida por seus espetáculos experimentais. Nestes quase cinquenta anos de existência, o Mabou Mines já produziu mais de cinquenta espetáculos, destacando-se seus processos colaborativos e suas versões de Samuel Beckett.

Em La Divina Caricatura, Breuer escolheu uma cachorra para protagonista. Para dar vida a este animal, o diretor recorreu aos bonecos, comuns em suas empreitadas teatrais. O espetáculo, que terá sua estreia no final de 2013, apresenta a vida e a morte de Rose Dog. Vira-lata, Rose é apaixonada por seu dono, que conheceu no metrô em NY. De fato, a cadela é uma new-yorker. E, inegavelmente, percebe-se na protagonista traços biográficos de seu autor.

O espetáculo, uma “mixed-media Bunraku Opera” promete uma rebuscada produção: além da clássica manipulação japonesa de bonecos que Breuer utiliza com regularidade, La Divina conta ainda com um conjunto afinado de atores-cantores, uma banda e projeções. O resultado disso é a composição composta de cada personagem. A voz de Rose, por exemplo, é de uma excelente cantora americana, enquanto que seus movimentos são regidos por 3-4 atores e sua trajetória é narrada pelo próprio Breuer. Nada dramático, portanto.

Descrito por Breuer como “Dante para bonecos e desenhos”, o musical, baseado no livro homônimo publicado recentemente, embaralha purgatório, inferno e paraíso. Tal como o diretor já havia enfatizado em sua premiada versão de Casa de Bonecas, de Ibsen, o espetáculo sublinha a intricada relação entre o indivíduo e a cultura. De fato, os bonecos funcionam para este multi-artista como uma metáfora da condição humana. Dante concordaria.

Categorias: Blog. Tags: carrossel, Fleur Elise Noble, Lee Breuer, Mabou Mines e Under The Radar Festival.