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Sismo das palavras

“Em toda a sociedade a produção do discurso é simultaneamente controlada, selecionada, organizada e redistribuída por certo número de procedimentos que têm por papel exorcizar os poderes e os perigos, refrear o acontecimento aleatório, disfarçar a sua pesada, temível materialidade” – diz Foucault em “A ordem do discurso” (1970, p. 2).

O filósofo francês especificará uma série de processos que interferem na produção discursiva, seja para legitimá-la ou excluí-la, sendo um deles o ritual, ou seja, “a qualificação que devem possuir os indivíduos que falam (e que, no jogo do diálogo, na interrogação, na recitação, devem ocupar determinada posição e formular determinado tipo de enunciados); define os gestos, os comportamentos, as circunstâncias e todo o conjunto de sinais que devem acompanhar o discurso; o ritual fixa, por fim, a eficácia, suposta ou imposta, das palavras, o seu efeito sobre aqueles a quem elas se dirigem, os limites do seu valor constrangedor”(p. 14). Desta forma, o ritual forja um ambiente de proteção, defesa e conservação do sujeito que fala, como portador de um conteúdo da verdade, como agente de poder. O ritual sacraliza e impermeabiliza o discurso, e cria sujeitos que podem dizer e outros que devem ouvir, como ocorre na prática religiosa e nos pronunciamentos políticos, mas também no convívio cotidiano pelo mesmo mecanismo de controle da linguagem, legitimação de verdades e relações de poder e dominação.

O espetáculo “Villa+Discurso”, escrito e dirigido pelo chileno Guillermo Calderón, e apresentado no 11º FIT-BH, se ergue justamente sobre o questionamento do discurso, expondo seus perigos e fragilidades. Assustadoramente simples, transborda a potência e a dimensionalidade do verbo em atuação intimista e franca. Os dois textos (Villa e Discurso) dividem o espetáculo em duas partes distintas, mas de íntima ligação de co-dependência. No primeiro, três mulheres identificadas como integrantes de uma comissão especial precisam decidir o destino de Villa Grimaldi, um dos principais campos de concentração da ditadura Pinochet demolido pelos militares para apagar sua existência e tudo o que ali ocorreu. Através de uma votação, a comissão definirá qual função um espaço marcado pelo horror da tortura e da morte irá assumir. A partir dessa situação, se arma um imbricado jogo de defesa e ataque, entre manipulações e revelações que atravessam dolorosas memórias pessoais e coletivas sobre a ditadura. A segunda parte ocorre após um pequeno intervalo, se utilizando do mesmo cenário da primeira, apresentando o discurso de despedida da presidenta Michelle Bachelet ao final de seu mandato, elaborado dramaturgicamente no entrelaçamento do pronunciamento real de Bachelet com um discurso fictício escrito por Calderón. As mesmas três atrizes assumem a voz da presidenta – primeira mulher eleita ao cargo no Chile – e dirigem ao público um balanço de sua gestão, em relatos de teor público e privado que criam facetas antagônicas para a personagem.

Acima das situações ficcionais, “Villa+Discurso” é a reflexão de Calderón sobre o seu país e as heranças que sua geração carrega – heranças que influem diretamente na construção do retrato atual do povo chileno, e mesmo, da identidade latino-americana. E, mais do que isso, é a problematização de como este passado é contado, compartilhado e oficializado. Por esta perspectiva, atinge conotação universal, pois enfatiza a relação da sociedade (qualquer uma) com seus traumas coletivos e com seu enfretamento. A obra realiza a discussão política inserida na arte de maneira consciente, não afetada e oportuna, sem se contagiar pelo teor panfletário, partidário ou meramente denunciativo, pois Calderón entende que o engajamento político vai além da defesa imperativa de uma causa ou do ataque a algo que se condena. Mais que isso, o político se dá na proposição de que não há nada mais perigoso do que o uso que se faz da palavra para a corrupção da linguagem.

Metalingüística, a obra se utiliza de diversos “procedimentos de controle” para forjar um “discurso contra si mesmo”. A interpretação das atrizes, munidas de um calculado teor dramático alternado entre realismo e distanciamento, cria fricções que evitam qualquer maniqueísmo – ou melhor, produzem tantos maniqueísmos cambiantes que estes acabam por se anular ao se revelarem inúteis à verdadeira discussão. Em Villa, a alternância de status e a transferência de poder entre as personagens constrói uma teia complexa de relações que salvaguarda a obra da recepção ingênua. Assim, se fala das atrocidades incontestáveis ocorridas na ditadura sem polarizar vilões e vítimas. O que salta da cena e violenta o espectador não está unicamente nos relatos sobre a ditadura Pinochet e sua desumanidade, mas na ditadura da palavra, do poder pela palavra, da palavra-força, palavra-tortura, palavra-esquecimento, somada à pungência de traumas pessoais e coletivos que geram sentimentos simultâneos de desolação, impotência e esperança. Se Villa Grimaldi ou outros campos de concentração se tornarão museus, parques de diversões ou simplesmente espaços vazios preenchidos pela memória, não importa tanto, já que o que eles representam estará perpetuado nas sequelas visíveis e invisíveis deixadas em toda a humanidade e no seu comportamento. Talvez por isso a encenação deposite na fisicalidade das atrizes toda a fonte de significações. Os diversos enunciados das personagens para os fins de Villa Grimaldi e a forma como se deixam afetar por esse embate oral é a genuína exploração do potencial das palavras em construir todo o universo de sentido, tão palpável que não se faz necessário qualquer suporte cenotécnico para a materialização do significado.

O “discurso contra si mesmo” que vai sendo construído em “Villa” chega ao seu ápice na segunda parte, “Discurso”, ao criar um ritual que não protege o dito, mas o expõe em plena contradição. As três vozes de Bachellet se suportam na contraposição de suas representações, gerando o retrato de uma mulher que é símbolo da resistência à ditadura, mas que se alinhou a um sistema neoliberal de governo, como ocorreu com a maioria dos países do nosso continente. Assim, o espectador não está diante apenas de uma dirigente política e de seu contexto particular, mas de um arquétipo contemporâneo da Latinoamérica. Além de seu perfil político, o texto humaniza a personagem inserindo em suas falas desejos e frustrações pessoais que a colocam em nível de igualdade com o espectador. Calderón cria uma figura humana, desarmada, frágil, humildemente sensibilizada – algo contrário ao status natural dos homens e mulheres que governam. O simples fato das mesmas atrizes de “Villa” assumirem a figura de Bachellet em “Discurso” resulta na transferência direta de toda a crise suscitada na primeira parte para a segunda, contribuindo para o objetivo central da obra: atacar a construção falsamente ordenada, controlada e pacificada da história, da memória e do discurso.

Por este viés dialético, “Villa+Discurso” se instala na discussão de um tema que é ao mesmo tempo sua forma e conteúdo: a legitimação dos discursos como dispositivos que perpetuam relações de poder e institucionalizam a linguagem autorizada como veículo da opressão. Mas apesar de ultrapassar a forma dramática ancorada na fábula, e se valer mais da exposição e contraposição de argumentos do que do diálogo intersubjetivo característico da representação, o chamado à subversão da ordem do discurso não ocorre pela mera discussão teórica ou argumentativa, ou por um exercício formal, pelo contrário, a obra não poupa carga emocional e captura o espectador por camadas mais sensíveis que racionais graças à presença vigorosa e não-ficcionalizada das atrizes e do enorme caráter performativo da escrita de Calderón. A combinação destes fatores consegue expor o tema com pulsação, como um corpo vivo aberto diante do público, permitindo a erupção de suas falhas, lacunas e interdições. O discurso de “Villa+Discurso” é o desejo das entrelinhas, do que costuma estar sufocado e subjugado pela ordem. Discurso vivo. Discurso que sangra.

Vale ressaltar, ainda, a composição cenográfica, limitada à mesa com dezenas de copos d’água, metaforizando o falatório e a verborragia dos pronunciamentos e discursos oficiais; e uma maquete de Villa Grimaldi, tão pequena e inofensiva em proporção às atrizes, chegando ironicamente a parecer uma casa de bonecas, símbolo da inocência e da pureza infantil, mas habitada pelos traumas sanguinolentos de um país. Ao fim da peça, após o pronunciamento de Bachellet, as luzes se apagam e as pequenas janelas da maquete se acendem, ao mesmo tempo em que um som grave e crescente faz tremer a mesa, os copos, a maquete, os corpos dos presentes. Este sismo materializa a tremulação da obra, o abalo das ideias postas sobre a mesa, das ideologias dominantes e dominadas. O terremoto, fenômeno geográfico tão marcante no Chile, faz trincar o verbo, causando o grande abalo e a comoção violenta. É o movimento do que está sob nós, transformando a paisagem, disparando os alarmes da ordem.

15 de Julho de 2012.

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