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SAGA, FICÇÕES E MISSIVAS: NORDESTINOS EM CENA

Uma das estreias nacionais do TEMPO_FESTIVAL 2015, NORDESTINOS, espetáculo idealizado por Alexandre Lino, com dramaturgia de Walter Daguerre e direção de Tuca Andrada, traz à cena histórias reais de pessoas que se jogaram na estrada para construção de novos mundos. Ainda que haja muita poesia e idealização nesta ideia, a noção de “saga” persegue e perseguiu a cultura do nordestino, que historicamente se vê em fluxos migratórios: um povo em si retirante.image

Muitas destas sagas – narrativas bastante ricas em incidentes e percalços que por muitas vezes soam heróicos a quem as ouve/ vê – foram descritas em cartas. Até a recentíssima revolução tecnológica que vem permitindo que o mundo nos pareça menor e mais acessível, eram as cartas que reaproximavam as pessoas separadas pela migração, revelando os sonhos remanescentes mas também os problemas em si contidos na retirância e os novos mundos que vão se construindo.

A ‘carta’, enquanto objeto de criação, sempre foi instigante aos criadores. A carta em si resguarda a potência do mergulho em subjetividades contidas na própria narrativa. E através de relatos extraídos de cartas (e não só delas, mas também da atualização tecnológica da função social da ‘carta’ que hoje se dá pelo email) que Walter Daguerre construiu, em processo compartilhado com elenco e direção, a dramaturgia de NORDESTINOS. No ínterim entre realidade e construcão ficcional, cartas reais possibilitaram acesso à memórias e embasaram o jogo teatral que se cruza com a história pessoal dos próprios atores e do diretor Tuca Andrada: todos nordestinos que também realizaram o deslocamento territorial para a construção de suas carreiras e trajetórias artísticas.

NORDESTINOS foi o vencedor do pitching do TEMPO_FESTIVAL 2014 como um projeto transmídia que inclui a publicação de um livro compilando as histórias reais que serviram de matéria-prima para a construcão do espetáculo e também um documentário realizado a partir da experiência da apresentação da peça exclusivamente para plateia de nordestinos também migrantes. No filme estarão acariados os quarto personagens construídos a partir da ideia de ‘depoimento’ com novos relatos do público estimulados pela peça: mais um mosaico de cenas, imagens, paisagens e memória – evocações que ampliam o espaço-tempo da cena, compondo um universo singular que mescla passado recente, realidades trespassadas pela própria imaginação e idealizações de futuro. Tudo isso presente na ideia de fluxo migratório e de deslocamento como potência criadora.

Toda a discussão proporcionada por NORDESTINOS, ainda que repleta de humor e a partir de uma atmosfera lúdica (que vai trazer ritmos e gêneros típicos do nordeste brasileiro pra cena) ganha ainda mais consistência quando inserida nos contextos migratórios globais que vemos hoje. A discussão sobre as migrações e as necessidades de deslocamento territorial tomam a atualidade. O fenômeno da migração de refugiados da Síria tem sido uma mostra eloquente de uma urgência. Milhares de sírios fogem da guerra civil que engrossa naquele país desde 2011, mas que é fruto de um problema histórico. Amontoados em navios clandestinos, estes refugiados tem chegado à Europa, mas não sem reação. Hemisfério abaixo, desde muitas décadas este tem sido o movimento dos nordestinos em direção ao “sul-maravilha”. Temos nosso próprio mediterrâneo, continental, menos bélico por um lado, mas por vezes tão cruel e árduo quanto os desertos do Oriente Médio. Já é trágico o destino dos migrantes sírios, mas talvez ainda não haja distanciamento histórico suficiente pra se extrair a dramaticidade desta tragicidade. Em relação às nossas migrações internas, elas nos são mais que familiares.

NORDESTINOS talvez seja a saga do vencedor, na medida que tem nos próprios atores e na empreitada artística a trajetória heróica dos nordestinos que ‘deram certo’. Mas é também um convite à uma reflexão necessária sobre fronteiras, origens e construções de mundo.

Categorias: Blog. Tags: Alexandre Lino, Encontro Artes Cênicas e Negócios, Nordestinos, Pitch, Tuca Andrada e Walter Daguerre.