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Ruff: a memória de Peggy Shaw

That’s the way I’ve learned theater —
by being told to trust my stories,
that they’re valuable, but also to trust my body,
that when it moves and I make a sound,
whatever comes out is the truth

Peggy Shaw

Encenar, de modo cômico, o seu derrame: eis a árdua tarefa que Peggy Shaw definiu para si no espetáculo Ruff, cuja estreia se deu dentro da programação oficial do COIL 2013, Festival de Inverno do Performance Space 122. Pode-se dizer que a dificuldade da proposta é dupla, sintetizada em duas perguntas: como abordar comicamente uma perda (já que a fórmula dos enlatados obriga às lágrimas)? E mais: como falar de algo que se perdeu (se está perdido, não poderá mais ser convocado, caso se deseje manter a coerência lógica)?

Uma das herdeiras do Teatro do Ridículo nova-iorquino (conhecido entre nós pelas montagens de O mistério de Irma Vap O médico e o monstro) e diretamente influenciada por Charles Ludlam, Shaw, um dos ícones da queer performance, é cria das drag queens. As fronteiras de genêro, bem como as dimensões do travestismo, são dois aspectos que entrelaçam a trajetória da performer ao ridículo movimento norte-americano. Fã de Marlon Brando, e parecida com Sean Penn, a co-fundadora do Split Britches é protagonista de uma trajetória artística marcada pela questão da identidade. Como Andy Warhol, sua figura é inconfundível: com seu inseparável terno, Shaw tem em si um exemplo marcante de hibridismo, que jamais se resolve em alguma espécie de redução sexual. Nascida mulher e com comportamentos masculinos, Shaw oscila, a cada gesto, entre estes dois extremos – sendo esta oscilação uma acentuada característica de suas aventuras teatrais. Exemplificam o que se está querendo dizer aqui espetáculos como You’re Just Like My Father (Você é como meu pai) e Menopausal Gentleman(O cavalheiro menopausa), este último, já trazendo em seu título o enfoque híbrido.

As limitações da lógica dos gêneros não se manifesta apenas no plano temático. Os limites entre o teatro e a performance também surgem no fazer de Shaw que, se, por um lado, tem sempre em suas idiossincráticas histórias e personalidade o foco do acontecimento cênico, por outro, não prescinde de ensaios, repetições, personagens, textos e outras convenções teatrais tradicionais. Aqui reside também uma das heranças do Teatro do Ridículo na performer, pois, em seus experimentos, Ludlam e companhia levam os recursos do teatro às suas últimas consequências.

Decorar um texto, no entanto, deixa de ser uma tarefa fácil para alguém que sofreu um derrame. Além da capacidade de memorização, o próprio conteúdo da memória se esvai, deixando no cérebro grandes zonas em branco. O desaparecimento, no entanto, não conduziu Shaw ao desespero – sob outra perspectiva, a performer optou por ver nele uma oportunidade, um espaço vazio, um palco que precisava ser preenchido. Eis que surge Ruff.

Shaw está sozinha em cena. Acompanham-na três monitores televisivos, que servem de ponto para a performer, e uma tela ao fundo (onde são projetados alguns vídeos e também um avatar da artista). Sem possuir uma estrutura narrativa linear, o espetáculo é composto por um conjunto de histórias e reflexões de Shaw a respeito de sua condição atual. O aspecto cômico, essencial em seus espetáculos e em qualquer show de drag, domina a cena, sem haver, todavia, uma diminuição do tema em troca do riso fácil. Pelo contrário. Ao rir de si mesma e suas histórias, Shaw ocupa um lugar especial, que não se impõe como absoluto e estável, mas oscilante, tal como sua figura inconfundível. É nesta oscilação que reside todo o encanto do espetáculo. No entanto, a discussão não para aí. Pois Ruff fala de uma memória perdida, mas também em constituição; ao focalizar uma performer lésbica após o derrame, o espetáculo apresenta um questionamento a respeito da identidade – não apenas pela via sexual, como era de se esperar nos trabalhos de Shaw – mas principalmente pela memória (e sua perda).

Por meio desta necessidade de revisão – de si mesma, de sua identidade – que se tem os melhores momentos do espetáculo: seja brincando com a sua semelhança a Penn (“As pessoas dizem que eu pareço com Sean Penn. Eu digo: ele é que se parece comigo”); seja zombando de seu próprio nome (“Eu pareço Peggy para vocês?”, sendo Peggy a porca movie star, personagem de Muppets babies); seja por meio de promessas de emergência (“Eu juro nunca mais usar ternos”, prometia ela, ajoelhada, no meio de sua crise de derrame); seja por meio da ironia (“Eu entrei no hospital como uma mulher que acha que é homem; saí de lá como um homem branco e heterossexual, já que metade do meu cérebro estava faltando”); seja confrontando-se com os recursos tecnológicos que criam um avatar de si; seja cantando músicas, como a infantil The name game (conhecida entre nós por Jogo da Rima, da Xuxa), a performer oferece ao público a sua criativa verdade (creative truth, como uma vez disse em uma entrevista).

(Este texto compõe o estudo Clássicos, Nova York: música, memória, lugar, cinema, publicado originalmente na edição de março da Revista Questão de Crítica e pode ser lido na íntegra aqui)

Categorias: Blog. Tags: carrossel, Charles Ludlam, COIL 2013, Peggy Shaw, Performance Space 122 e Split Britches.