“Ou podemos falar sobre o que estamos vendo: uma parede preta, atrás dela a rua, alguns carros passando, árvores compridas e atrás dela o mar. No fundo do mar, e isso não estamos vendo, peixes de várias cores, anêmonas, enguias, rochas cheias de crostas e cracas, e ainda atrás, uma baleia. Não estamos vendo, mas neste momento ela está silenciosa. Ela está silenciosa porque ela sabe. Porque vê” (Texto do programa da peça Otro, do Coletivo Improviso).
É com essa cena que se conclui Otro: com uma imersão súbita no fundo do mar que não vemos – mas que imaginamos e percebemos nos gestos graciosos, infantis, porém majestosos, de Cristina Moura feita baleia-bailarina no azul do grande oceano. “Ela está silenciosa porque ela sabe”… que vai desaparecer da nossa percepção e talvez do mar, verdadeiramente. Enquanto isso, o mar da baleia que dança nos olha, profundamente e criticamente porque o seu desaparecimento tem a ver com a gente, porque nos importa – porque cela nous regarde.
É o fenômeno que vivencia Stephen Dedalus em Ulysses como o analisa Georges Didi-Huberman no seu livro Ce que nous voyons, ce qui nous regarde (o que vemos, o que nos olha, tradução de Paulo Neves): “E o limiar que se abre aí, entre o que Stephen Dedalus vê (o mar que se afasta) e o que o olha (a mãe que morre), esse limiar não é senão a abertura que ele carrega dentro de si, a “ferida aberta do seu coração” (232).
Da abertura jorra algo. Não mais o petróleo da BP – mas sonhos acordados e imagens poéticas. Daquelas trazidas pelo espetáculo Finnegans Ueinzz que explora junto com Joyce os fundos oceânicos da sonoridade e da textura textual, fundos onde para ver é preciso fechar os olhos (e sonhar acordado): oráculo deixado por Joyce em Ulysses, aqui reformulado para a ocasião.