Depois de anos sem se verem, três velhos palhaços de circo se reencontram por acaso em uma agência de empregos, onde participam de um processo de seleção no qual apenas um será escolhido. A partir desta premissa, o espetáculo “Adeus, Palhaços Mortos”, adaptação da obra “Petit Boulot Pour Vieux Clown”, do premiado dramaturgo romeno Matei Visniec, faz uma ode ao ofício do ator e uma reflexão sobre os pilares filosóficos da carreira artística. Fruto da parceria entre o grupo Academia de Palhaços e o diretor José Roberto Jardim, a montagem foi um dos maiores sucessos da temporada teatral de 2016 em São Paulo (levou o Prêmio Shell SP na categoria Melhor Cenário e teve quatro indicações ao Prêmio Aplauso Brasil) e está em cartaz até 28 de maio no Rio, no Sesc Copacabana. Em entrevista ao TEMPO_CONTÍNUO, o diretor (também autor da adaptação) falou sobre a marcante concepção estética e dramatúrgica do espetáculo, o intercâmbio criativo com a Academia de Palhaços e a futura apresentação de “Adeus, Palhaços Mortos” no Festival Internacional World Stage Design, em Taiwan.
Você pode nos contar um pouco sobre a gênese do projeto?
Eu e a Academia de Palhaços temos uma história de amizade e trocas artísticas desde 2011, mas nunca tínhamos montado um espetáculo efetivamente juntos. Pela nossa proximidade, essa vontade começou a ficar mais presente ao longo dos anos, especialmente por termos abordagens teatrais que poderiam se complementar de forma potente e singular: eles com sua profunda pesquisa sobre as máscaras do ator popular, eu com minha busca por uma cena mais essencialista, calcada na criação de panoramas sonoros e físicos com expedientes ligados às estéticas contemporâneas. Assim, em 2015, fomos contemplados no edital de Fomento ao Teatro da Cidade de São Paulo com um projeto de reavaliação e redirecionamento da trajetória da companhia, que agora contava comigo na direção, do qual resultou o espetáculo “Adeus, Palhaços Mortos”.
O que o atraiu nesse texto?
Encontrei esse texto por acaso. Lançaram há alguns anos inúmeras obras traduzidas do Matei Visniec, e, por eu ser um leitor compulsivo de novas dramaturgias e dramaturgos, comprei tudo que havia dele para conhecê-lo, mas apenas a título de curiosidade e estudo pessoal. Foi quando me deparei com este seu texto, “Petit Boulot pour Vieux Clown”, que tratava de três palhaços velhos em final de carreira se reencontrando, depois de muitos anos separados, em uma agência de empregos para pleitearem uma única vaga. Foi inevitável não associar o conflito posto pelo texto de Visniec com esta companhia, especialmente pelo fato trágico que haviam recém-passado em sua história. Explico melhor: um ano antes de eu encontrar esse texto, a Kombi que a Academia de Palhaços utilizava como transporte e palco de cinco de seus espetáculos itinerantes, com a qual viajavam e se apresentavam pela cidade de São Paulo, pegou fogo, destruindo figurinos, cenários, além de materiais de som e iluminação destes seus espetáculos de repertório. Com isso, uma crise profunda se instalou no grupo. Imediatamente, dois dos cinco integrantes originais e fundadores saíram da sociedade, restando agora apenas esses três atores remanescentes: Laiza Dantas, Paula Hemsi e Rodrigo Pocidônio. Com esse duro golpe e depois de um ano sabático, os três resolveram que voltariam aos palcos e retomariam os trabalhos do grupo com afinco, mas entenderam na época que precisavam ressignificar suas histórias e trajetórias artísticas em um novo começo, em uma nova busca. E foi nesse momento que nos juntamos efetivamente para que dessa união todos pudéssemos nos transformar. Então, a escolha desse texto se deu de forma potente e única, pois com ele tivemos a possibilidade de falar sobre finais de ciclos, tanto éticos quanto estéticos, e sobre essência, devoção e necessidades profundas que temos em relação ao nosso ofício. E esses são pontos que tangenciam qualquer um, em qualquer lugar, pois são questões existenciais de reafirmação individual e pessoal frente às vicissitudes da vida.
Como foi o trabalho de adaptação do texto?
Levei quase dois meses adaptando esse texto. Me apoiei sobre alguns pontos que para mim eram caros nesse processo e necessários nessa minha nova condução e direção, especialmente por ser com esses atores e esse grupo. Iniciei um trabalho de desidratação do texto. Cortando textos e palavras de maneira muito pessoal e despudorada, como costumo fazer em todos os meus processos de direção e estudos de cena. Com isso, crio de antemão ritmos e coloraturas mais próximas das imagens que desejo buscar em cena. E como conheço bem os três integrantes da companhia, pude realizar a divisão e polimento de falas de forma direta e precisa, assim como dos momentos chave para se adequarem às tessituras e potências que eles possuíam. Concomitantemente, trabalhei inserções na dramaturgia de textos meus para ligações de cena, mas especialmente fiz interpolações de clássicos do universo teatral que povoam o imaginário de todos, como trechos da obra de Shakespeare (“Hamlet”, “Otelo”, “Rei Lear”, “Romeu e Julieta”, “Ricardo III”, “Julio Cesar”) até Beckett com sua dramaturgia e romances (“Not I”, “Godot”, “Molloy”, “Malone”). Quando o texto chegou a um ponto de essência e contundência rítmica e formal para mim, com os pedais iniciais já definidos quanto à densidade e nortes a serem seguidos, iniciei a sala de ensaio para as descobertas práticas junto aos atores. Realizamos, então, o corte sumário de todo o segundo ato do texto original, e criei as repetições com suas sínteses, que estão no espetáculo, para ressaltar a prisão sisífica dessas personagens, algo tão angustiante quanto beckettiano, para atingir nosso intento provocativo neste espetáculo.
Você já disse que a ideia de “fotograma” foi um pilar da concepção cênica do espetáculo. Pode nos explicar melhor o que é essa ideia e como ela foi desenvolvida?
Penso a cena e o espetáculo como uma forma de atingir a plateia de uma maneira outra. Busco mexer na percepção que as pessoas têm do suporte teatral, por meio de uma experienciação sensorial, mais do que por meio de um reconhecimento racional. Por isso, busco usar expedientes não usuais no teatro clássico, como, neste caso, a trilha eletroacústica de Tiago de Mello, um dos maiores representantes dessa vertente no Brasil, assim como a vídeo-instalação e suas releituras realizadas pelo Coletivo Bijari. Desta forma, e continuando minha pesquisa de movimento e voz em cena, busco radicalizar os corpos a quase não gesticulação ou movimentação, da mesma maneira que as vozes devam criar deslocamentos únicos e não cotidianos. Por isso o fotograma foi minha investida primordial neste espetáculo. A partir de flashes e piscar de luzes, acompanharíamos o desenrolar dessas personagens, como se flagrássemos a história como voyeurs, os assistindo por entre as poucas frestas que o inconsciente deles nos permite. Assim, o espetáculo, em nossa segunda semana de ensaios, já assumiu essa estética. Por entre mais de 350 acionamentos de luz, sons e projeções, o dividimos entre cenas vistas ora com luz, ora na escuridão completa. O entendimento das relações internas e da narrativa deveria se dar na cabeça do público apenas pela soma de seus fragmentos, uma busca de gestalt cênica. Por esse motivo, a precisão e o rigor das atuações dos três intérpretes foram levados ao paroxismo para gerar uma cena, e consequentemente uma obra, de impacto visual e psicológico fragmentado e convulso.
Você pode falar um pouco sobre o aspecto visual da peça? Como foram pensados e de que maneira se articulam os vídeos, os figurinos, o visagismo?
A construção e o casamento entre todos esses elementos se deu de maneira muito singular. Ao iniciar os ensaios com o texto completamente readequado e metamorfoseado para nossas ambições, tudo foi se encaixando provocativamente conforme as necessidades surgiam da cena, do palco. Tiago de Mello, ao se juntar aos ensaios, vendo na ideia dos fotogramas a necessidade de disparadores radicais de cortes na percepção de espaço-tempo que buscávamos, propôs uma trilha e experienciação sonora baseada em distorções de sons de aplausos, criando uma atmosfera onde o lugar não mais poderia ser entendido, apenas sentido por outras vias sensíveis. O mesmo ele realizou com as vozes dos atores e os sons incidentais que correm pela sala de apresentação. Os vídeos da Bijari, projetados sobre as faces de um cubo de 3,5 metros de lado, que se tornou nosso único espaço cênico de ação, foram feitos a partir de grafismos e desenhos geométricos relidos do construtivismo e do cubismo. Isso gerou uma ortogonia seca em um aparato de simetria inumano que complementava a sinuosidade dos sons eletroacústicos como a das inúmeras variações das vozes dos atores. Como essas três personagens já estavam situadas em um não-lugar, um limbo sem referências realistas, premissa constantemente buscada em meus trabalhos, o figurino potencializou isso ao criá-los como palhaços de tempos imemoriais. Lino Villaventura releu as vestes e arquétipos de palhaços conhecidos da história mundial nas roupas e adereços que utilizaram. Por este mesmo motivo, o multitalentoso Leopoldo Pacheco construiu o visagismo destes atores com máscaras clownescas em que o afável e o demoníaco dialogam com delicados traços pretos e coloridos sobre o branco intenso de suas faces.
O espetáculo tem sido muito comentado (e elogiado) pela sua experimentação sonora. O que você pode dizer sobre esse aspecto da encenação?
Fico muito feliz pelo elogio que faz ao espetáculo com essa pergunta. Obrigado! Eu acredito que para haver uma experienciação verdadeira de uma obra plástico-teatral, como definem a busca em minhas direções, deve-se haver uma soma indissociável entre visualidade e sonoridade. Eis como acredito atingir de maneira singular e profunda os sentidos múltiplos de quem nos assiste. Então, o encontro e construção disso com o maestro Tiago de Mello foram imprescindíveis. Ele tem um estudo e carreira sobre a composição eletroacústica que são muito especiais. Isso o faz um criador que também está em busca de novas formas de percepção e apreensão da arte. Sua cabeça e vontades estão a serviço da comunicação assim como da provocação, posto que acreditamos, ambos, que não há como fazer uma obra artística potente sem sair do esperado, ou permanecendo no conforto das vontades estabelecidas, hegemônicas. Minha busca de cena, por tentar ser muito auditiva e musical com os atores e texto, junta-se a de Mello de maneira muito feliz e inspiradora. Vide o belíssimo trabalho de paisagem e construção sonora que o espetáculo assumiu com a sua composição, além da sua ação ao vivo, tocando sua trilha durante nossas apresentações.
Vocês foram convidados para representar o Brasil no Festival Internacional World Stage Design, em Taiwan. Como foi esse convite e como estão os preparativos? Qual é a expectativa para o futuro do espetáculo? Há novas temporadas em vista?
Sou muito amigo de uma professora de pós-graduação da faculdade de Belas Artes de São Paulo. Ao convidá-la para assistir ao “Palhaços Mortos”, ela me pediu para levar junto alguns amigos que estavam visitando o Brasil. Qual minha surpresa que ao final do espetáculo um deles se apresentou a mim como integrante do Festival WSD e que estava animadíssimo com o que havíamos criado, apresentado, e me pediu para que conversássemos mais sobre a obra e a possibilidade de o apresentarmos nessa quadrienal em Taiwan, que busca, justamente, mostrar obras com pesquisas e fusões de linguagem realizadas pelo mundo, que usam o palco como suporte. Mandamos o material de nosso espetáculo para ele e sua comissão e agora estamos com sessões marcadas para o apresentar em julho na cidade de Taipé, além de palestras e mesas redondas para discussão e trocas sobre este trabalho. Estamos com uma linda receptividade de curadores e críticos, e estamos em conversas avançadas para que consigamos viajar mais internacionalmente com ele. Estamos muito animados com essas possibilidades todas que estão se apresentando!
Há novas parcerias entre você e a Academia de Palhaços a caminho? O que pode nos contar sobre elas?
Sim, inclusive já estamos ensaiando nosso próximo espetáculo juntos, que será a segunda parte do projeto que se iniciou com este último, o “Palhaços Mortos”, criando um díptico, que agora se chamará: “Adeus, Titus Andronicus”, baseado na obra de William Shakespeare. Queremos, com essa nova jornada, aprofundar e radicalizar ainda mais os pedais cênicos encontrados no “Palhaços Mortos”, desde seus corpos agonizantes e precisos, suas vozes multidirecionais, seus sons e atmosferas eletroacústicas, como a interface com a tecnologia e vídeo-instalação. Em nosso “Adeus, Titus Andronicus”, a metalinguagem será exacerbada a outros níveis, criando um questionamento tanto estético quanto ético sobre as bases da retidão moral e de nossas escolhas privadas e públicas. Quais as consequências de nossos atos e posicionamentos num mundo cada vez mais aberto a comunicações imediatas, velozes e efêmeras? Queremos encampar com essa continuidade a oportunidade de verticalizar ainda mais a forma de reler e rever a cena em nossas potências conjuntas. Seremos a mesma equipe técnica criadora e os mesmos três atores em cena. Inclusive, estamos pensando muito em realizar a sua estreia em terras cariocas, dada à receptividade e entusiasmo de amigos e interessados nessa nossa temporada no Rio de Janeiro. Espero realmente que isso aconteça neste segundo semestre! “Adeus, Titus Andronicus” será uma continuidade necessária para o encontro que tivemos com o “Adeus, Palhaços Mortos”, será uma obra com a nossa vontade e comprometimento em primeira pessoa.
[foto: o elenco com o diretor. Crédito: Victor Lemini]