Por Marcia Zanelatto |
Cary Grant e Katherine Hepburn passaram a vida se beijando nas telas e jamais puderam dar a ver, através de seus trabalhos, o que sabiam em suas vidas: que um homem amar outro homem e uma mulher amar outra mulher é absolutamente normal.
O cinema do mundo foi feito por gays. O teatro do mundo foi feito por gays. A TV do mundo foi feita por gays. Mas as histórias e os protagonistas foram heterossexuais. Creio que é a hora de nós, os narradores, mudarmos esse jogo.
Se o mundo que existe é o mundo que podemos narrar, será que abrimos mão de disputar a narração da afetividade com os comerciais de margarina? Será que deixamos de lutar pelas narrativas e personagens LGBTQs que tornariam nosso mundo melhor para nós mesmos? Como seria o mundo hoje se Katherine Hepburn tivesse saído de mãos dadas com sua namorada pelas ruas de Paris numa linda noite em preto e branco de 1946? Como será o mundo agora que Cate Blanchet fez algo parecido?
A propósito, após ver “Carol”, saí do cinema emocionada. Porque me dei conta de que o amor entre duas mulheres não fez parte das grandes histórias que li, que vi e que me sustentam.
Em 1981, Gilberto Braga apresentava o primeiro personagem gay da TV brasileira. Inácio, interpretado por Dennis Carvalho, lutou para ser aceito por sua mãe e teve final feliz. Um amigo me contou que ele e sua mãe, na época, abalados com a sexualidade dele, choraram juntos e chegaram a um tipo delicado de compaixão, diante da tela de TV. Mas por que ainda é raro esse tipo de personagem? O Inácio de Gilberto Braga não era um homem vestido de mulher, isso a TV sempre aceitou de maneira alegre e circense.
Desde Shakespeare, os homens fazem papel de mulher. Dizem até que foi o bardo quem inventou a Drag Queen, quando usou em suas peças a rubrica: DRessed As a Girl – que logo teria sido substituída pela sigla DRAG. Muito divertido imaginar que Shakespeare teria inventado tudo, até a drag. Que até Ru Paul é Shakespeare. Mas não é disso que estamos falando. E também não estamos falando também de figuras marginais, carismáticas e amendrontadoras, que só aparecem de noite e com aspecto selvagem. Não estamos falando de guetos e vidas sombrias de compulsão sexual, que é onde e como os gays aparecem nos palcos e telas mais populares.
Estamos falando de pessoas comuns que amam pessoas do mesmo sexo que elas, isso é básico. Isso não é um escândalo. Como dizia a minha avó: “- Tem em todas as famílias!” Mas por que não teve em 98% da nossa dramaturgia?
Bem, a essa altura não interessa mais saber se é porque os donos do dinheiro não queriam desagradar a Igreja. Ou se isso atrapalharia o negócio das Forças Armadas. Ou se não queriam correr o risco de uma queda abrupta no crescimento populacional do mundo – o que agora seria bastante desejável. O fato é que não dá mais.
As pessoas do dinheiro, da Igreja e das Forças Armadas já estão se virando. Agora é com a gente. Se em cada peça, filme, novela não tiver ao menos um LGBTQ, estamos correndo o risco de ficar na História como aqueles que autorizaram o discurso de ódio e intolerância daqueles que dizem que não existimos perante a lei.
Temos que ficar espertos.
Em tempos de crise moral e ética como a que estamos vivendo, os narradores são tão responsáveis pela manutenção vida, ela mesma, quanto os guardas da cidade.
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Marcia Zanelatto é dramaturga e idealizadora do projeto Rio Diversidade, reunião de peças curtas centradas no tema da diversidade de gênero.
[foto: Cate Blanchett e Rooney Mara no filme “Carol”]