É noite de estréia no Teatro, em Copacabana, no Rio. A fila serpenteava o espaço externo do SESC e, se não foi suficiente pra lotar aquela enorme arena, foi por pouco. Calor humano, como é comum em noites de estreia. Pode ter sido o lugar na primeira fila, pode ter sido o calor humano, mas quando começou “Silêncio!”, escrita por Renata Mizrahi, quase me senti espiando a vida alheia, que podia muito bem ser a de qualquer um. Quase.
É jantar de Shabat para a família de Débora (Gabriela Estevão), que está prestes a noivar. É também aniversário de 50 anos de sua mãe, Regina (Verônica Reis), e a mocinha resolve estrear como anfitriã para a família, como antigamente, em sua casa, na noite de ocasião tão especial. A partir daqui, qualquer detalhe da sinopse estragaria para o leitor o prazer de descobrir, aos poucos, os detalhes e peculiaridades daquela família que se apresenta em “Silêncio!”.
Estaríamos todos naquela sala, recebendo os familiares que não sobem de elevador ou tocam campainha, talvez até sentados à mesa posta por Débora e analisada microscopicamente por sua avó Esther (Suzana Faini). A opção pela arena é perfeita nesse caso – coloca os convidados da noite em roda, fitando-se sem querer, obrigados a se perceberem mutuamente ou se esforçarem para ignorar o outro, tal uma reunião familiar. Estaríamos ali, não fosse a iluminação tão aberta e o cenário prêt-à-porter com seus banquinhos bege, que não caem bem e nos deixam com a certeza de sermos meros espectadores. Eu queria entrar na sala, mas estávamos todos na platéia.
O texto de “Silêncio!” começa com um vigor que não se perde, e nos leva sem cansaço pelos 80 minutos de peça. Esther matraqueia magistralmente durante a maior parte da peça. Avó judia, “mãe duas vezes”, não dá tempo nem espaço para falas, opiniões, contemporizações. Faini domina a fala do excelente texto que tem em mãos e nos remete aos nossos chefes de família em suas verdades absolutas e imposições, e nos faz quase querer pedir que pare de falar um minuto, que deixe sua família em paz um pouco. Quase. Com as marcas, atores deixam de ser personagens bem na nossa frente, mas permanecem em cena, desmontados, esperando suas deixas, solução conhecida para a ausência de coxias. Mas nos lembram, de novo, somos meros espectadores.
O grande destaque em cena – em um elenco que está tão conectado que mais parece uma companhia, ponto em cruz da direção de atores, sem dúvida – fica para Verônica Reis no papel de Regina. Se Faini foi presenteada com o texto, e soube usá-lo a seu favor com perfeição, é bom reiterar, o momento em que lhe falta a verborragia não é tão bom. O trabalho de Verônica Reis, por outro lado, se aproveita da ausência do texto. Regina definha à mesa de jantar, bem debaixo do nariz de todos, enquanto corre a cena. O trabalho da atriz, que explora a ausência de falas e a contenção própria de sua personagem, puxa os olhos de quem assiste. Angustia e cria compaixão em quem está ali, diante do retrato de uma mulher que aceitou tantas repressões disfarçadas de amor, compromisso, cuidado – como tantas mulheres que conhecemos . Dá quase vontade de levantar e acolher aquela mãe de duas filhas, à beira de um colapso no próprio aniversário de 50 anos. Quase. O figurino, que parece ser de uma época, não se sabe qual, em texto tão contemporâneo, dissipa a empatia de quem está na platéia.
Renata Mizrahi nos apresenta um belo trabalho e demonstra um salto em sua técnica e sensibilidade para escrita desde “Os Sapos”, seu último trabalho no teatro adulto, que já demonstrava força dramatúrgica. “Silêncio!” é o tipo de texto que, promete vida longa, e merece novas leituras cênicas. Há, sim, no texto uma ou outra fala que sublinha a mensagem da peça – o que mais parece uma insegurança de autora iniciante, buscando a certeza de que a “moral da história” e as informações da pesquisa serão transmitidas. A crítica do Rio parece não ter percebido isso e ter focado apenas nos desajustes em cena, que, de fato, criam um efeito de distanciamento que não parece ser opção estética. De todo modo, todos os deslizes, aqui enumerados, têm efeito de nada mais que deslizes, suspiros em suspenso enquanto a peça nos leva pela mão.
“Silêncio!” é drama que faz rir. Rir de nervoso, já que não há piadas ali. Não é nada simples construir isso com a palavra. E Mizrahi o faz. O título se desdobra nas reflexões sobre a ocultação de um segredo, necessário para a existência da família, na interrupção constante das falas, repressão mais que comum no seio familiar, no momento de introspecção ritual do jantar do Shabat, na incapacidade de formular qualquer frase diante da experiência de abismo (“estou abismada”) que é se descobrir fruto de mentiras. O momento do alívio cômico, após a “grande revelação”, sublinhada, é verdade, mas ainda assim emocionante, é pista de que Mizrahi domina sua técnica. É momento de desespero para aqueles personagens, e de gargalhadas na platéia.
Não fosse dedicado esse espaço a jogar luz sobre a qualidade do trabalho da autora, poderia servir a pensar a palavra e o significado de “Silêncio” por diferentes prismas, inspirando-se nessa peça. A autora, judia-carioca-sem religião, nos fala de uma família específica, com um conflito específico e circunscrito ao judaísmo no Brasil, e as palavras parecem ecos de uma família qualquer. Tem-se, assim, uma obra, capaz de tocar quem quer que se sente na platéia.
“Silêncio!” é o tipo de bom texto de que o teatro precisa. O texto, feito para a cena, comprometido em contar uma história. E bem. Uma história bem contada no palco e que não faz o espectador sentir falta da tela. Que leva o grande público ao teatro, e é feito para o grande público e não para uma platéia de “iniciados”.
Vida longa a “Silêncio!” e à dramaturgia de Renata Mizrahi . E que na próxima, que vem por aí, ela lembre de que nós, na platéia, queremos sim entrar. Era noite de estréia numa sexta-feira e, ao final, fomos mimados com um coquetel de comidinhas judaicas. Tenho certeza de que Débora faria melhor. Eu usei o elevador. E continuo sonhando com um jantar na Polonesa de Copacabana, pra onde quase fomos naquela noite. Quase. Era noite de estréia e não ia caber.