Por Bia Kaysel
Os olhos ainda cheios de lágrimas ao escrever esse texto. Foi um ato de terrorismo contra artistas. Um ato de terrorismo contra o humor. Multi-culturalismos à parte, não há nada que justifique a aberração de ontem.
A violência foi tamanha que parecia ficção. Cena de filme. Mas não era. Era a realidade. Toda uma redação do jornal Charlie Hebdo foi dizimada. Uma violência atroz. Uma tragédia. A bala calando uma voz. Não consigo crer nas pessoas que tentam justificar a violência com o conteúdo das charges que eles publicavam — é como o machista que justifica o estupro pelo tamanho da saia que a vítima usava. Inaceitável.
Pouco tempo depois do atentado, que foi a dois passos de casa, passei pela Place de la Republique onde as pessoas se manifestavam contra o atentado, estava no meu caminho ao teatro. Fui assistir a Fragmentos de Beckett, dirigido por Peter Brook. Cheguei a considerar ficar na manifestação, mas já tinha comprado esse ingresso há tanto tempo… Fui ver a peça.
Antes de começar o espetáculo Peter Brook subiu no palco e falou sobre o choque, a vida, a morte, a coragem que teríamos que ter para falar sobre tudo isso. Olhou nos nossos olhos dos espectadores e pediu um minuto de silêncio em nome dos mortos. O teatro todo atendeu em comunhão, durante um minuto não ouvíamos sequer uma cadeira se mexer. Eu me paralisei e secretamente chorei de emoção e dor. Peter Brook também chorou. Imagino que outros espectadores também, mas não olhei à volta.
Na saída da peça encontrei um amigo do teatro, ator e diretor e perguntei o que tinha achado do espetáculo. “O melhor foi o silêncio antes da peça começar.” Concordo com ele.
Não podemos esquecer o que houve e não podemos calar. Depois da dor, do choque, do luto. Vem o silêncio. Como disse em outro texto sobre o mesmo assunto: as violências são tantas, essa foi extrema e impactante, trágica. Mas existem as violências diárias, homeopáticas, latejando embaixo da carne dura da rotina, e às vezes escolhemos olhar para o outro lado. Ignorar.
Sempre me lembro do texto de George Simmel, As grandes cidades e a vida do espirito, que fala da nossa necessidade incessante de se amortizar, pois se cada violência que vivemos na cidade entrasse em nosso espirito ficaríamos loucos, enfim ele fala da alienação como forma de sobrevivência, isso tudo no século XIX, o que diria Simmel dos dias de hoje?
Talvez ele concordaria com Angelica Lidell, que afirma que tematizar a dor e os sentimentos profundos é revolucionário, pois é um grito contra a banalização. Recentemente assisti a uma entrevista dela falando sobre sua necessidade de colocar o espectador em situações extremas de desconforto para que possa refletir, para gerar um conflito. “Gerar conflitos imorais para que o espectador chegue a conclusões morais”
Segundo Angelica a dor nos permite refletir. “Nossa função é detectar a dor, detectar a imperfeição, pois quando negamos a angustia, a morte, a dor, e passamos a buscar o mundo perfeito e feliz dos anúncios televisivos ai não existimos mais. Não tem nenhum sentido negar o sofrimento. E isso não tem nada a ver com masoquismo.”
Tudo isso que aconteceu aqui na França de ontem pra hoje me fez pensar nessa reflexão de Angelica. Apesar de que isso não era um espetáculo, não foi poético, nem estético. Simplesmente foi a vida sendo interrompida, foi extremo e cheio de desconforto. Não podemos deixar o silêncio se instaurar, e a dor ser anestesiada. É preciso aceitar e compreender o conflito que isso gerou.
Muitos temem a escalada da extrema direita aqui na França, e o uso que o xenófobos farão desse fato de ontem. Eu mesma, há alguns meses, vi um ataque neonazista nas ruas de Paris cometido contra um grupo de jovens estrangeiros e me choquei.
Ontem Philippe Vadal deu uma entrevista emocionada e emocionante na France Info, falando justamente do medo que ele tinha do uso que a extrema direita poderia ter desse fato. Mas da importância de dizer não a este tipo de ataque, da importância da mobilização entre artistas, jornalistas e intelectuais.
Não. O silencio não pode reinar.