O mais recente trabalho de Richard Foreman não é um espetáculo, mas um filme. Exibido pela primeira vez no Anthology Film Archives, criado por Jonas Mekas, Once Every Day expõe, já em seu título, o eixo estrutural da nova produção do fundador do Teatro Ontológico-Histérico. Nele, a expressão “once upon a time” (era uma vez) surge apropriada e deslocada, apontando, ao invés da fábula, para o dia-a-dia do trabalho. Uma evidente tensão serve como perspectiva para a obra, visto que a frequência diária se choca com a unicidade da experiência. Ao trazer, assim, para o coração da expressão fabular, a rotina, Foreman deflagra o real no ficcional.
Esta não é a primeira incursão do diretor no cinema. Outras cinco produções compõem a sua obra cinematográfica, sendo frutífero trazer uma delas, Strong Medicine (1981), para a presente análise. Neste filme, acompanhamos a aventura onírica de Rhoda. Esta mulher de meia-idade evoca diretamente o adjetivo “histérico” do teatro de Foreman: aparentando uma tradicional representante da burguesia (em especial, pelo seu figurino), Rhoda se desloca por contextos diversos, trazendo constantemente em seu olhar, em sua expressão e em seu comportamento uma desconfiança capaz de tornar qualquer situação estranha. A genealogia desta heroína deve ser traçada por meio de filmes como os de Maya Deren, em especial Meshes of The Afternoon (1943), onde uma figura feminina (a própria cineasta) encontra-se em situações que, ao longo das sequências, se repetem, porém, sempre com modificações de objetos e perspectivas. Tanto no caso de Deren quanto no caso de Foreman, temos a impressão de que os espaços externos de atuação da protagonista (os salões, o consultório, o trem etc., no caso de Foreman; a casa, no caso de Deren) constituem espaços internos. Mergulhamos, com isso, no espaço mental de figuras femininas e, nesta dimensão, necessariamente, a estrutura linear narrativa entra em colapso. Pois é impossível discernir o plano real daquele ficcional. Se Meshes of The Afternoonprescinde de verbalizações, no caso de Strong Medicine, Foreman lança mão de recursos narrativos, tais como cartelas (que lembram tanto as pranchas de Brecht quanto as legendas de filme mudo), além da própria Rhoda expondo em voz alta seus pensamentos (o que reforça a dimensão onírica do filme). Tais recursos (em frases como “uma semana depois”, “um tempo antes” etc.) não conseguem localizar o espectador, atuando como peças de um quebra-cabeça impossível de se montar. De fato, o filme de Foreman tensiona ao máximo não apenas a causalidade narrativa, mas também o encadeamento espacial. A contiguidade espacial, por meio do sequenciamento de cenas, que confere verossimilhança à trajetória do protagonista (sair do quarto e entrar na cozinha, por exemplo) é, a todo momento de Strong Medicine, explodida.
Mas Strong Medicine se insere, de modo bem explícito, ainda nas convenções teatrais. Personagens fechados, gestos dirigidos à câmera, falas decoradas, tipos definidos, figurinos e cenários: todo o aparato cênico está presente para ser atomizado por Foreman. Em Once Every Day, o mecanismo é outro. É esclarecedor observar a manipulação do som nestes dois trabalhos: no primeiro, a voz narrativa se faz presente, pontuada por passagens instrumentais que conferem às cenas uma atmosfera de suspense. Em seu mais recente trabalho, mal se ouve os sons. O foco está na imagem, no enquadramento. E, para reforçar este objetivo, Foreman lança mão daquilo que é para muitos um recurso característico do cinema: o close.
Na história do cinema, o close é um instrumento que sublinha a importância de determinado objeto ou evento. Algo que tenha uma relevância significativa, do ponto de vista narrativo, será sempre um grande candidato ao close. E se este recurso for utilizado para coisas insignificantes? E se ele, ao invés de revelar os gestos virtuosos e significativos, mostrar aqueles involuntários e despreocupados? Se o close, ao invés de focalizar o cerne da cena, desviar-se para o que nela há de mais arbitrário? É precisamente esta a abordagem de Richard Foreman em Once Every Day.
O filme em questão não apresenta narrativa. Ao longo de 66 minutos, assistimos a um conjunto de imagens captadas a partir de poucos dias de ensaio realizados por um grupo de atores sob a orientação de Foreman. Não se trata, no entanto, de um making of. Tampouco algo próximo de documentários como Moscou, de Eduardo Coutinho, ou Looking for Richard III, de Al Pacino. Neste caso, o olho da câmera é de uma absoluta dispersão. O enquadramento revela a espera de um ator para o início da cena, seu corpo relaxado (porém coberto de tensão, a tensão do ensaio), detalhes do canto da sala e outros aspectos que passariam facilmente despercebidos. Tal como Strong Medicine, Foreman também lança mão de legendas verbais, no entanto, as palavras surgem totalmente desvinculadas de narratividade. Elas devem, sobretudo, serem vistas, assim como as imagens supérfluas que compõem todo o filme.
Em O efeito do real (2), Roland Barthes se pergunta a respeito da significância, no contexto narrativo, dos pormenores insignificantes. Um barômetro na descrição de Flaubert, a pequena porta de Michelet e outros detalhes: a que servem, do ponto de vista da narrativa? O autor francês, após memorável reflexão, conclui que tais “pormenores inúteis”, inevitáveis, constituem a categoria do real. Em Once Every Day, os detalhes estão órfãos – abandonadas à sua própria sorte, as imagens, dispersas na proximidade cirúrgica do close, configuram, nada além e nada aquém do que o próprio real. Por vias tortas, encontramos enfim o realismo de Richard Foreman: nada mais inútil do que isso.
(Este texto compõe o estudo Clássicos, Nova York: música, memória, lugar, cinema, publicado originalmente na edição de março da Revista Questão de Crítica e pode ser lido na íntegra aqui)