Rizoma é um modelo descritivo ou epistemológico na teoria filosófica de Gilles Deleuze e Félix Guattari. Segundo o modelo, a estrutura do conhecimento não deriva, por meios lógicos, de um conjunto de princípios primeiros, mas sim elabora-se simultaneamente, a partir de todos os pontos sob a influência de diferentes observações e conceitualizações. Deleuze e Guattari tomam emprestado este termo da botânica. Rizoma, para esta área do conhecimento, define um tipo de caule que cresce horizontalmente sendo a origem de diversos outros caules, troncos ou folhas.
Ainda que não tenha sido um conceito aplicado diretamente à curadoria do TEMPO_FESTIVAL 2015, tomando a programação do festival de uma vista panorâmica, esta imagem também pode se aplicar: um rizoma.
“A doutora advogada esquece o julgamento e faz teatro! Isso aqui é vida real, doutora!”
A sala do juri estava lotada. As palavras ecoaram em todos os presentes. Era uma réplica. A Doutora Simone Sibilio, promotora da 4a Vara Criminal do Ministério Público do Rio Janeiro, advogada real, de carne-e-osso, tomada pelo trâmite processual, pediu a palavra, inflamada, provocada e, principalmente, fora do roteiro. Isso mesmo, roteiro. Seria uma réplica normal, já que antes a defesa da Defensora Pública Doutora Glauce Passos Maues tinha realmente performado de maneira visceral, convincente, inequívoca. Outra de carne-e-osso que levou à absolvição de seu cliente. Seria tudo normal. Seria se o réu não fosse Hamlet. Se a testemunha principal não fosse a própria Gertrude e a acusadora Ofélia. Seu crime, um dos mais conhecidos da literatura dramática universal: Hamlet matou Polônio.
Esta imagem – a da Promotora real no auge da sua performance na acusação à Hamlet, talvez dê conta de um rizoma que pautou o TEMPO_FESTIVAL de 2015: as fricções narrativas entre realidade e ficção e a dimensão eminentemente política que este início de século XXI vem impondo ao pensamento dos criadores na arte contemporânea.
Dias antes do julgamento de Hamlet na sala do Tribunal do Juri, entre plásticos, plantas, baterias e guitarras, um elenco só de mulheres evocando as Pussy Riots, as mulheres russas que protestam com seus corpos e extrema visceralidade, diziam “palavras dirigidas ao coração”.
Martha Kiss Perone, com seu Rozà, propôs um atravessamento na biografia de Rosa de Luxemburgo, mais um impressionante personagem real. Dentre tantas destas palavras, entre as janelas que se abriam pra cidade, pro tempo presente, e que demonstravam a visita que, daqui, estas mulheres fazem a esta outra mulher icônica, entre tantas, diziam:
“ Eu não tenho medo desta ficção mal-feita para mim”
Ficções mal-feitas, bem-feitas, lacunares, olhares enviesados, olhares distorcidos, olhares contestadores, todos os olhares puderam gerar leituras múltiplas sobre o tempo. Os olhares revelaram protagonismos políticos. Múltiplas políticas.
Política das múltiplas afetividades nos encontros íntimos de Raquel André com desconhecidos na sua Coleção de Amantes: o anônimo como protagonista.
Política d’o corpo e da sexualidade com a performance de Caio Riscado em que se disponibiliza a ser um receptáculo do preconceito do outro no Sonho Alterosa em Processo.
Política de internacionalização da palavra e da língua na ID Espanhola com tradução, leituras e lançamentos de dramaturgias.
Política na construção do sujeito contemporâneo na investida de Christiane Jatahy sobre o Macbeth na sua Floresta que anda.
Política ou geopolítica da cidade e do olhar extraordinário sobre o homem como em Exercícios para Sr. Silva, de Cristina Moura com o Coletivo Baleia.
Política de afirmação identitária, de origem, de lugar, de pertencimento em Nordestinos, de Alexandre Lino, Walter Daguerre e Tuca Andrada.
Política do grotesco como expressão da possibilidade inumana na procura por Paul McCarthy do Coletivo Wunderbaum.
Política de expansão da fronteira invisível da cidade nos shows do Dance Rocinha.
Política de subversão da crítica, colocando-a como possibilidade criativa e reflexiva diante da obra como na Crítica Performativa do Antro Positivo.
Política de contestação no debate sobre os zoológicos humanos em peformance-instalação de Brett Bailey, no Museu de Arte do Rio, que se abre à beira da baía de onde a cidade cresceu e na praça que demarca seu passaporte para o futuro.
“O brasileiro é bom!”
O tom foi dado desde a largada: no Puzzle de Felipe Hirsh, que representou o Brasil na Feira de Frankfurt em 2014, presenciamos (e participamos) de uma sucessão de peças – as peças do quebra-cabeça – sobre o Brasil e o brasileiro, potencializando a palavra como instrumento perturbador, com textos da literatura brasileira contemporânea que ganham, em tintas pretas e fortes, lugar de denúncia.
Em todas estas dimensões processaram-se a realidade, os personagens e fatos reais, históricos, trespassados por narrativas ficcionais que os ressignificaram. Muito mais do que revelar procedimentos comuns às artes cênicas na contemporaneidade – presentificação e relação ficção-documento já são quase chavões da criação no nosso tempo -, o que se viu no TEMPO_FESTIVAL foi a ineroxabilidade do tempo-presente. O artista trazendo à luz suas angústias enquanto cidadão do tempo, mas permitindo que estas transcendessem as suas noções de mundo e beirassem o extraordinário.
Quando os sacos plásticos tomam formas dançantes na Tarde de Ventania da Cia Non Nova, no calor da lona na Zona Norte ou no ar-condicionado congelante da zona sul, fronteiras se dissipam e um sopro poético nos faz lembrar da matéria da qual somos feitos, a que fazemos e, melhor, de como fazemos. TEMPO_FESTIVAL 2015, na edição em que talvez o seu rizoma tenha tido o desenho mais nítido, pareceu dar um sinal de que o artista ainda é o agente da profunda harmonização que o mundo demanda com extrema urgência.
Afinal, cada dia mais, a rua, a cidade, o mundo, tem parecido mais com uma ficção. O atravessamento de realidade do teatro atual talvez faça-nos acordar os sentidos e corrigirmos órbitas.
Que venha um novo rizoma, novas questões, mais teatro no TEMPO_FESTIVAL 2016!