Serge Daney (1944-1992), um dos pensadores de cinema mais influentes da França, disse na entrevista “Itinéraire d’un cine-fils” (“Itinerário de um filho do cinema” ou “Itinerário de um cinéfilo”, em tradução livre) que “alguns filmes é que nos olham e não o contrário”. Sentada na platéia do Oi Futuro, fui olhada pelo espetáculo “A lei do caminhante”, cujo texto é uma transcrição desta entrevista concedida ao filósofo francês Régis Debray e realizada em 1992, pouco tempo antes de sua morte.
Enquanto Daney faz uma viagem por sua vida que vai acabar brevemente, numa mistura rigorosa entre autobiografia e história do cinema, somos levados, pela encenação e pela interpretação intimista e cinematográfica do ator Nicolas Bouchaud, a fazer nossa viagem pessoal usando o mapa de nossa infância, nossas memórias e a memória do cinema. O espetáculo dirigido por Eric Didry e idealizado por Bouchaud nos olha e nos dá uma imagem impossível de ver, por sua capacidade de mostrar e ao mesmo tempo nos oferecer o vazio da presença irrecuperável de nossas memórias e de nosso passado. No escuro do teatro, conseguimos perceber a luz do pensamento de Daney e do cinema, justamente porque não conseguimos alcançá-la.
No início do espetáculo, o ator Nicolas Bouchaud primeiro nos olha por detrás da tela branca que parece estar caindo, colocada no fundo do palco negro. Ele aparece, se esconde, reaparece e se senta na cadeira diante dos espectadores, nos olhando por um tempo. Esconde-se, depois volta com uma bebida e rolos de filmes, sentando-se para olhar novamente o público. Olha a plateia e devolve o que vê dela espelhando seus gestos, reproduzindo as posturas e intenções do olhar, como no jogo infantil de imitação do outro. Ao nos olhar, ele questiona nossa forma de ver e nos convida a olhá-lo de forma nova, talvez infantil, pois, como disse Daney, “o cinema é a infância”. Esta brincadeira infantil feita pelo ator, mostrando e escondendo o rosto atrás da tela, abre em nós uma cisão ritmicamente repetida, fazendo do nosso ato de ver, uma obra de perda, justamente porque sabemos que alguma coisa resta.
O texto da entrevista/espetáculo de Daney/Bouchaud é interrompido frequentemente pela projeção de cenas do filme “Rio Bravo” de Howard Hawks, um dos primeiros filmes sobre o qual escreveu Daney, na revista “Visages du cinema” em 1962. Quando as primeiras cenas do faroeste são projetadas na tela, somos transportados para um cinema e levamos um choque espaço-temporal, numa montagem de tempos heterogêneos formando anacronismos. Em seu livro “O que vemos, o que nos olha”, Georges Didi-Huberman pensa a imagem crítica como uma operação, um choque, um trabalho dialético, uma montagem de elementos e temporalidades heterogêneos. Neste sentido, as cenas projetadas do filme “Rio Bravo” têm uma função crítica na medida em que produzem choques e colisões na rota dos caminhantes.
A cada vez que vemos as imagens deste filme, o ator interage com elas de forma diferente, escondendo-se atrás dos cenários ou colocando-se diante da imagem dos atores, ou ainda dublando suas falas. Num momento, ouvimos somente a sonoplastia do filme e o ator reage corporalmente aos sons, aos tiros, se jogando no chão ou fazendo as posturas e posições de cada personagem. Um belo instante é quando as imagens e sons desaparecem, como se fechássemos os olhos para ver melhor, e o ator Bouchaud canta a música “My rifle my pony and me” cantada no filme pelos atores Dean Martim e Ricky Nelson. Viajei para um passado onde meu tio, que amava os filmes de faroeste, falava deles com um prazer infantil e cantava repetidamente as músicas. Bouchaud joga com o filme, joga com o cinema e com nossas memórias, desperta o prazer infantil de jogar com as imagens, de entrar dentro delas, de fazer parte delas.
No confronto entre as imagens antigas e imateriais de John Wayne com o corpo físico de Bouchaud, temos a percepção do vazio da presença de um corpo semelhante ao nosso, mas esvaziado de vida. No confronto entre as palavras antigas de um Daney ausente e a presença performática de Bouchaud, opera-se uma complexidade temporal, plena de heterogeneidades e afetividades .
Se numa entrevista de 1968 para o “Cahiers du cinema” Jacques Rivette delarava que “todos os filmes são sobre o teatro; não há outro tema” e se André Bazin, em 1951, declarava num artigo para a revista “Théâtre et cinéma” que todo o cinema americano está impregnado de teatro, posso afirmar que no espetáculo “A lei do caminhante” vemos um teatro impregnado pelo cinema e não um teatro com projeções de imagens. O que vemos é um teatro sobre o cinema, sobre o olhar e sobre o tempo.