Atravessar fronteiras em longos processos criativos é uma constante no pensamento artístico do ator Luís Melo. Entre os anos 80 e 90, sob a batuta do diretor Antunes Filho, ele integrou o Centro de Pesquisa Teatral (CPT), em São Paulo, um projeto seminal em que os espetáculos eram criados através de longos processos de pesquisa de linguagem, incorporando no coletivo os diversos elementos do teatro. A experiência foi desdobrada no Ateliê de Criação Teatral (ACT), criado em 2001 por Melo, ao lado da atriz Nena Inoue e do cenógrafo Fernando Marés, em Curitiba, sua cidade natal. A proposta de um espaço para criação imersiva e transdisciplinar agora se configura no que o Luís chama de “projeto de vida”: o Campo das Artes. Trata-se de um complexo cultural instalado em um terreno de 164 mil metros quadrados em São Luiz do Purunã, a 40 quilômetros de Curitiba. O conjunto arquitetônico reúne uma série de contêineres que abrigam alojamentos, lavanderia, refeitório, oficinas de marcenaria, serralheria e figurino, depósito, além de salas multiuso, café e lanchonete, horta e estufa. Nesse espaço, o ator pretende que artistas se reúnam para desenvolver trabalhos, dialogando também com a comunidade local. Em entrevista ao TEMPO_CONTÍNUO, Luís Melo falou sobre o Campo das Artes. Confira.
Como surgiu a ideia do Campo das Artes?
A ideia é uma consequência da minha trajetória, da minha formação, da minha vivência artística como ator e criador. Foi uma contaminação que se deu através do CPT – Centro de Pesquisa Teatral, do Sesc, coordenado pelo Antunes Filho, que foi uma sementinha do que eu intuía, que me levou a sair de Curitiba atrás de uma pesquisa mais longa, mais elaborada de novas linguagens para o teatro. Foi fruto destes dez anos vividos no Centro de Pesquisa, onde os espetáculos eram feitos ali. Cenografia, figurinos, texto. A feitura era um processo muito mais dinâmico do que estava acostumado dentro da minha formação artística acadêmica. A produção de um espetáculo é muito limitada à questão do tempo, sem espaço para a busca da elaboração, para o crescimento artístico, para formar não só um ator, mas um artista, um criador. Depois desta experiência com Antunes, veio a televisão, como uma necessidade para continuar fazendo, realizando sonhos. Foi daí que veio o Ateliê de Criação Teatral [o ACT, projeto criado em 2001 em Curitiba por Luís Melo, em parceria com a atriz Nena Inoue e o cenógrafo Fernando Marés, que durou até 2009]. Resolvi voltar para Curitiba e desenvolver ali um centro de pesquisa, que sempre acreditei ser possível. Uma cidade com profissionais incríveis, mas que não teria essa urgência dos grandes centros, como Rio e são Paulo. Sempre me preocupava quando estava ensaiando numa sala, com horários determinados, porque a criação não tem hora para começar, nem para terminar. O artista merece ter um espaço para criação, onde possa receber as suas ideias, trocar, reunir pessoas afins em processos de trabalho. E o ACT teve uma função bem importante. Muito do resultado do teatro paranaense se deve ao ACT, ficou provado que é possível, sim, os grupos terem suas sedes, batalharem por elas, dar a opção de lugares alternativos para apresentarem seus resultados e processos. O Campo das Artes foi uma consequência disso. Resolvi levar a produção para um local mais tranquilo, e aí o sonho começou.
E, a partir da ideia, como o projeto se desenvolveu?
O ACT esteve por oito anos em Curitiba, em uma antiga estufa de bananas, que transformamos em uma estufa de ideias. Era um lugar muito especial. Em 2008, me afastei do ACT, me mudei para o campo e comecei a pensar na ideia do Campo das Artes para sediar um trabalho não apenas com a comunidade artística, mas a comunidade local também. E neste formato de residências artísticas, no qual as artes convivem. Eu não gosto de trabalhar só com teatro, eu sempre tive muitas influências de outras artes, e este convívio é muito interessante ser feito dentro do campo. Mesmo no ACT, reunimos artistas plásticos, músicos, jornalistas, escritores, pessoas interessadas em pesquisar determinados temas e autores. E o resultado era muito rico. Essa convivência com outras áreas tirava a gente um pouco da prisão das leis rígidas de criação – que dizem que isso pode e isso não pode. A criação precisa ter certa liberdade e a técnica é feita para atender a essa abertura que foi dada. A partir de 2008, fui investindo nessa infraestrutura. É um belo projeto do arquiteto e cenógrafo J.C. Serroni, um parceiro de muitos anos. Também conto com o apoio de Renato Santoro, um arquiteto bastante criativo que comprou a ideia e está fazendo a unificação de todos os setores. Tive, desde o início, o mesmo mestre de obras, que também acreditou no projeto e foi viajando dentro das loucuras propostas a partir de uma pesquisa de novos processos desde a construção, da maneira de se fazer, com a reutilização de materiais e a escolha de opções mais baratas, com efeito plástico e arquitetônico, bonito de ser ver. Para que as pessoas venham ao Campo e se sintam bem, em casa, bem recebidas, com todas as possibilidades de se trabalhar e ser criativo. Nesses quase dez anos, eu viajei muito e visitei muitos espaços, centros de cultura pelo mundo afora. Muitas vezes se pensa que é necessária uma estrutura imensa, e percebi que tudo isso é adaptável quando se tem o interesse da criação. Tive oportunidade de vivenciar isso. Os amigos dizem que o Campo “tem a cara do Melo”. Tem uma maneira de ser, um cuidado, uma delicadeza que eu tenho. O respeito e a admiração que tenho pelo artista e pelo criador. Também admiro muito o artesanal, valorizo tudo que é construindo pelas mãos do homem. O Campo está impregnado disso.
O complexo fica a 40 quilômetros de Curitiba. Como você chegou a esse lugar e por que resolveu criar ali o empreendimento?
O Campo fica em São Luiz do Purunã, distrito de Balsa Nova, região dos Campos Gerais. Depois de muita busca, quem me trouxe até aqui foi o Beto Bruel, grande iluminador, que também é paranaense e trabalhou por muito tempo no ACT. Sabendo do meu sonho, me trouxe para essa região, onde ele nasceu. Quando vi, foi uma coisa de energia. Algo me disse que esse era o espaço para a existência do Campo das Artes.
Você poderia descrever a infraestrutura do Campo?
No momento, o Campo tem um espaço de convivência para receber as pessoas e uma sala multiuso, que atende a exposições, ensaios e mostra de processos, e conta com acabamento acústico ideal para registros audiovisuais. Toda a estrutura de iluminação, que está sendo desenvolvida junto com o Beto Bruel, poderá ser utilizada também na área externa, para apresentações ao ar livre. Enquanto os outros barracões do projeto inicial ainda não estão prontos – serão seis no total –, usamos esta base para atividades principalmente ligadas aos trabalhos sociais: a feira de produtos rurais e orgânicos e a valorização da produção local, como desenvolvimento de receitas antigas que podem ser resgatadas e experimentadas pelo público que vem ao Campo. Seis contêineres servem como vestiário e reserva técnica, funcionando como um acervo de arte, depósito de luz, de som, arquibancadas, estruturas e geradores. Temos três locais para a residência, que são os alojamentos que acomodam os artistas durante o processo de criação. Existe também a oficina para elaboração de cenários, serralheria, marcenaria, manutenção de equipamentos de luz de som, criação de matéria-prima, depósito de material, móveis e objetos. A ideia é que os projetos nasçam e sejam pesquisados aqui, os processos sejam abertos ao público e, se for possível, que a apresentação deles, antes da saída do Campo, seja feita para a comunidade local, para que ela possa acompanhar o que está sendo feito. Também tem um barracão para a lavandaria coletiva e cozinha com refeitório, totalmente equipada para atender aos residentes. Além disso, existe uma horta, totalmente orgânica, que atende à alimentação e também será espaço para oficinas. Existe também um barracão que eu chamo de Rural Contemporâneo, que é a integração entre o artesão local e o artista, para serem desenvolvidos produtos e ideias que possam ser comercializados para gerar uma receita para a comunidade.
Como será a sua participação na ingerência desse empreendimento?
Não pretendo administrar o Campo das Artes, eu sou um artista. Mas eu pretendo que as comunidades local e artística se apossem do espaço. Tem uma abertura para que as pessoas utilizem o Campo em vivências artísticas, numa relação muito mais saudável, e que seja formativa também. Quero trazer a comunidade para acompanhar os processos, não por obrigação, mas movida pelo encantamento, pelo interesse em descobrir coisas novas. Os processos precisam ser expostos num movimento dinâmico. Por isso os alojamentos, a cozinha, a lavanderia e outros espaços são coletivos. É um grande laboratório! É assim que eu vislumbro o Campo das Artes. Eu sei que essa energia está implantada e que, naturalmente, serão espaços de criação e intercâmbio formativos, de acompanhamento, de descobertas, de curiosidades. É isso que me interessa.
Você já falou em implantar um modelo de economia criativa no Campo. Como isso vai funcionar?
Se houver interesse do governo, da prefeitura ou da iniciativa privada em investir, ótimo. Mas eu quero uma coisa mais dinâmica. Parte de criação artística até pode ser interrompida por falta de verba ou incentivo. Mas o trabalho social, não. Então, quero desenvolver um trabalho para que ela própria se sustente. Através de um intercâmbio com outros projetos que já estão pagos e precisam de um local – alugando espaços para eventos e ações que possam ser desenvolvidas aqui. Este dinheiro será revertido para manutenção do Campo. Queremos criar um público que consuma esses projetos, através de associações de pessoas físicas que possam contribuir para o abatimento do imposto de renda. A ideia é tornar o espaço dinâmico, mas com um direcionamento. É claro que não vamos abrir o espaço para coisas que não estejam dentro da nossa filosofia, da ideia do espaço de criação, mas o mecanismo será bem-vindo através do turismo da região. Então, nesta primeira etapa, estou reunindo setores, pessoas ligadas a todas as artes, ONGs, associações, institutos, empresas, para pensar o Campo das Artes, para tornar o funcionamento mais dinâmico. Estes produtos e espetáculos que serão feitos aqui serão comercializados através da circulação. Criaremos artifícios para manter o espaço vivo e ativo, principalmente os trabalhos sociais. Eu preciso incentivar e formar pessoas para atenderem tanto o Campo das Artes, como também uma produção que venha de fora.
Como os projetos serão escolhidos?
O Campo vai funcionar por meio de editais e terá uma curadoria selecionando, vendo trabalhos, preparando um processo para achar a nossa linha de ação, onde o Campo pode contribuir mais efetivamente para formação e desenvolvimento de novas linguagens. Ele ainda não tem um prazo, estamos entrando agora num projeto de lei municipal enquanto existem outras coisas em andamento relacionadas à estrutura física do Campo. Tem um projeto que me interessa muito, que estou buscando junto à iniciativa privada. É o centro de tudo, o coração pulsante, a nossa biblioteca. Já temos um acervo significativo de livros, CDs e DVDs, e toda essa parte de informação estará disponível para pesquisa dos artistas e da comunidade local. Também queremos disponibilizar uma academia para aulas de corpo e exercícios físicos. A cidade não tem cinema, então queremos uma sala de projeção com ciclos de vídeo. Além de um local de reuniões e palestras. A primeira etapa é de uma vivência artística da comunidade dentro do nosso espaço. Assim, vamos encontrar os monitores, pessoas que vão nos apoiar no sentido de descobrir as manifestações artísticas locais, certas afinidades com determinadas áreas da arte, um primeiro contato com a arte moderna contemporânea. Discutir o que é um processo de criação, o que é uma residência artística, o que isso significa, que retorno isso dará para o turismo da região, para a formação.
[foto: Paulo Henrique Camargo]