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O encontro com o livro do autor que você ama supõe um gesto de sua parte: conceder-lhe, à primeira vista, o direito de fazer você aceitar que não compreende. Para que você receba o que ele lhe destina, lhe envia, e perceba o gesto, a carícia da mão que não escreve, a mão que, no máximo, como a de Clarice [Lispector], manipula um cigarro, pega em uma xícara e café, se aproxima de seu cachorro. Você a aceita límpida e inexplicável. Um livro não precisa ser hermético para ser inexplicável. E, enfim, o que chamamos aqui de amar? A pequena Ester de Bleak House de Dickens, aquela que dizia saber não ser inteligente, protesta certa vez: “Eu acredito que compreenderia, se, ao menos, não me explicasses.” Clarice [Lispector] poderia ter se apropriado dessa resposta. O “porque não me interessa, a causa é matéria do passado”, escreve ela.
O título, sem dúvida escolhido por seu filho Paulo, A descoberta do mundo poderia fazer pensar no mundo geográfico, como o de uma criança ou o de Cristóvão Colombo, ou no Brasil, país que naturalizou – que estranho verbo! – Clarice [Lispector]. Mas não é nada disso, A descoberta do mundo é o título de uma crônica (a de 6 de Julho de 1970) na qual nenhuma vez sequer ocorre a palavra mundo. Trata-se das coisas da vida, uma expressão dos americanos para evocar “a relação profunda de amor entre um homem e uma mulher, da qual nascem as crianças.” O mundo e a vida, esta estranha substância, se confundem. Clarice [Lispector], um pouco lenta, com então treze anos, descobre como viemos ao mundo, que “coisa da vida” determina que um ser humano venha ao mundo. E reparem que, ao fim dessa crônica, quando ela jura que a vida é bela, ela amaria que os leitores e leitoras, tenham eles treze anos ou muito mais do que isso, afrontassem o inexplicavelmente simples. Suas crônicas serão diretas e simples. Somos todos pessoas, e só seremos tocados pelo livro quando cada um de nós se tornar Ninguém, como se dizia Ulisses na Odisseia para escapar do Ciclope. Somos esse ninguém anônimo, animal e humano, a quem, a cada sábado, Clarice se dirige, na madrugada do Rio de Janeiro, com sua máquina Olympia sobre os joelhos, e a seu lado um cachorro extraordinário, um pouco neurótico, que fumava e bebia coca-cola com uísque, chamado Ulisses. Um cachorro é ignorante o bastante para não saber que não deve fumar? “A ignorância nunca me fez mal”, escrevia a jovem Clarice [Lispector].
Terei me utilizado de um truque? Minha comparação não é exclusivamente numérica. Esse encontro se dá segundo o modelo distante do amor. Poderíamos crer que esse encontro dá-se em cada uma de suas vidas segundo a sabedoria bíblica: há tempo para tudo. De todo modo, não é assim tão simples. Vocês se lembram de circunstâncias desses encontros, mas vocês se lembram também de lugares e de momentos que arruinaram um encontro possível. Não havia lugar para ele. A umidade, o fluir das horas no outono de Xangai bloquearam para mim, por muito tempo, a leitura de um longo romance de Henry James, mesmo que eu me esforçasse e me forçasse – romance, parece, maravilhoso. Me lembro da história de uma viajante que havia imaginado alguma correspondência, uma fusão possível, entre Dante e a Islândia. Ela levou A divina comédia para a Islândia e foi rejeitada no segundo canto do Inferno. Você escolhe o que vai ler de acordo com sua tensão nervosa, a temperatura ambiente, o meio de transporte que usa. E, por mais intuitivo, ou quem sabe erudito, que você seja, jamais poderá esquecer que, na sua escolha por uma leitura, assim como na sua escolha de vida, é o amor que fala mais alto. E se, em ambas as coisas, na leitura e na vida, é o amor o que fala mais alto, é porque em relação a elas você não é profissional, mas amante, e, sobretudo, amador. Você sabe quais são em qualquer lugar ou tempo as obras primas dignas do prêmio Nobel e da ilha deserta. Mas para o encontro com o livro do autor que você ama você não se tornou profissional, mas permaneceu amadores. Isso já é alguma coisa. Graças a Deus. Você acredita que um tal encontro amoroso depende do acaso, mas só relativamente ele depende de alguns fatores contingentes. Ele não é oportuno, no amor a ocasião não faz o ladrão. Não é verdade que há narrativas e mesmo confidências que começam assim Naquele dia eu jamais esperaria conhecê-lo(a) naquele sinistro bairro da periferia… e se segue uma história de amor. Que posteriormente se insira, na confidência e na paisagem, uma estrela em céu terrível e fechado de novembro, tendo tudo começado dessa forma, é só um embelezamento supersticioso. Se a circunstância está na medida certa, e ela estava na medida certa naquele começo, o encontro foi mais duro, mais pedregoso.
Terminemos com aquela metáfora que manca e me atrapalha, se o amor não se controla, logo no princípio sabemos que as dificuldades começam. Você sabe que entrará no livro do autor que ama, mas que nunca terminará de chegar a ele. E, da mesma forma, o autor o conduz pela leitura inacabada de sua obra inacabada. Você será nutrido e logo desmamado. Poderá compreender, mas não poderá explicar o que entendeu, aceitando não compreender. E só continuará o caminho com essa dificuldade, o perseguindo à essa luz. Como os de Kafka, certos romances de Clarice Lispector são difíceis para mim. Serão necessários anos para ir até o fim. Talvez esses livros estejam aí, expostos e vigilantes. E parece que Clarice [Lispector] ela mesma se torna a leitora mal sucedida de sua obra inacabada. Ela o pressente. Guimarães Rosa um dia lhe disse que a lia não enquanto literatura, mas enquanto vida. Ele lhe citou de memória frases e frases que ela havia escrito. Ela não reconheceu nenhuma. De uma mão, ela os tinha esquecido.
Robert Walser prefigurava Clarice [Lispector] escrevendo: “Sua estrada passa pelos louvores e reprovações, uma outra estrada a corta, pelo meio.” Em retorno, em um fragmento a propósito de um personagem que ela começara a descrever, Clarice [Lispector] traça um retrato imaginário de Robert Walser: “O que ele realmente e profundamente era, não era visível nem perceptível. O que ele era existia assim como uma praia na Ásia que neste momento em que estais aqui, a praia está lá. Ele mesmo, apesar de não poder se negar, no entanto não se provava nem a si nem aos outros. O que ele realmente era não era passível de prova.” E Robert Walser parece ter respondido a esse retrato: “As palavras que me presto a dizer aqui tem vontade própria, elas são mais fortes, mais potentes do que eu, e acredito ainda que elas desejem dormir, ou que não lhes agrada ser o que são, (…) e, do meu lado, acho que há tanto espírito quanto beleza singular me tornando, por assim dizer, incapaz de conhecer as palavras, (…) e logo, no momento de abordar a extensão pálida e acidentada não tenho a menor vontade de me reconhecer como o que eu era. Achava, pelo contrário, muito sutil da minha parte me persuadir de que eu era um senhor tal e tal que se apercebia de uma hora para a outra que ele era totalmente irreconhecível.” Certamente, Robert Walser fala de si como um homem solitário e ocioso, que, ao fim de suas crônicas, deseja boa noite ao seu leitor e sai para um passeio, enquanto que Clarice [Lispector] escrevente, dona de casa, mãe, cidadã, conhece mais de perto seus leitores, pessoas com as mais banais preocupações. Seu público a responde, e ela mantém sua correspondência nas colunas do jornal, sustentando, o que é falso, que ela jamais escreve cartas. Walser dá uma forma epistolar a certas crônicas, seus correspondentes são mais distantes, imaginados, as cartas parecem enviadas a uma mulher que passa por ele na rua ou em um parque. Clarice [Lispector] escreve ao gosto de sua máquina. Walser, ao gosto de seu lápis, não mais usando, nessa época, a caneta; cobrindo todos os papéis que encontra pela frente, reutilizando envelopes e faturas, preenchendo-os com caracteres tão minúsculos que foram necessários vinte anos para decifrar as páginas de suas crônicas e folhetins reunidos sob o título de O território do lápis. Se um parentesco entre os dois vem à mente, não é sem motivos. Não tanto pelo estilo, mais complexo, mais erudito e preciosista em Walser, mas por ambos compartilharem a humildade do “eu” e a humildade dos começos. Clarice [Lispector] escreve em uma carta a Fernando Sabino: “Estou prestes a te escrever e, no entanto, não tenho nada a dizer. (…) Mas o engraçado é que não tendo absolutamente nada o que dizer, dá uma vontade enorme de dizer. (…) Ou então viro criança e minha vontade seria depender inteiramente de outra pessoa, esperar dela todos os ensinamentos. Ou então viro mãe e me preparo toda para dizer grave: as coisas são assim e assim, meu filho. Preparo-me bem grave, tenho o gesto maternal de começar a informar – e na hora de abrir a boca não tenho o que dizer, viro de novo ignorante e em vez de dizer o discurso, imploro: por favor, diga! E assim é que, por não ter absolutamente nada o que dizer, até livro já escrevi, e você também. Até que a dignidade do silêncio venha, o que é frase muito bonitinha e me emociona civicamente.”
Começo: haverá acontecimentos, mas quais?, haverá uma história, mas é preciso que haja a espera da história, depois a semente da história, é preciso deixá-la se fazer, nascer ou não, é preciso fantasiar antes de ler e escrever, e depois haverá a decepção de uma história, se bem que talvez seja melhor aceitar a raiva de não saber seu fim. Segundo aquela tirada moral: “Ser dificilmente tocado deveria se mostrar mais conveniente do que cometer a imprudência de amar, ao mesmo tempo em que se odeia até a morte.” (Walser) O que poderia parecer uma postura da modernidade, o elogio do fragmento, é a resposta ética à dificuldade das lágrimas. E a tentativa de acariciar, prometendo falar mais da vida do que da literatura, é uma maneira simples de alcançá-las. Assim chegam para nós o gosto das batatas e a bondade do mundo, o suéter que ganhamos de presente e que vamos estrear, e a glória da condição feminina.
O olhar de Clarice Lispector está no ângulo reto do triângulo retângulo de onde ela observa a variável do horizonte da hipotenusa. Nós a podemos ouvir como que em um palco de teatro, e é porque ela se dirige àqueles que se distanciam da opinião best-seller e lamentam a decadência do analfabetismo. Como um conselho para a vida, ela indica o recuo da esperança. Nem desprezo, nem recusa, o recuo da esperança é o movimento da onda que se afasta e que vai voltar. Não dizer nada e depois dizer acariciar a coragem de viver. Hoje, nós precisamos disso. Brincar: “Sonhei que um peixe tirava a roupa e ficava nu.” Provocar: “Todas as visitas que recebi na vida chegaram, se sentaram e nada disseram. Eu entendi.” Da fantasia conduzir em direção ao silêncio, sabendo que uma outra estrada corta o leitor pelo meio. Um dia em 1971, falando de suas viagens, Clarice [Lispector] se lembra de uma noite na Polônia, na casa de uma das secretárias da embaixada. Ela sai para o terraço, uma grande e escura floresta lhe mostra de maneira emocionante o caminho para a Ucrânia. “Senti o apelo. A Rússia me tinha também. Mas eu pertenço ao Brasil.” É essa mulher, na ponta dos pés, que vejo, Clarice Lispector no terraço.