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NOITE DE BERNA – pt.1

O texto “Noite de Berna” foi produzido pelo diretor e dramaturgo Bruno Bayen em sua residência de 2 meses no Rio de Janeiro, nos quais pesquisou o universo de Clarice Lispector com a parceria do TEMPO_FESTIVAL das Artes.

(O texto está dividido em 4 posts. Ao final da leitura, haverá o link para que você possa prossegui-la!)

“Em nenhuma circunstância, uma personalidade considera que é desejável ser compreendida a todo o momento. A popularidade barulhenta jamais a interessa. Ser amada em todo lugar a avilta, e ela não se superestima ao ponto de crer na possibilidade de que todo o mundo ame vê-la. Somos acima de tudo uma personalidade quando não nos valorizamos por nós mesmos, e que não desejamos nos valorizar. Uma personalidade põe o natural acima de tudo. Ela jamais experimenta o desejo de ser uma exceção. Se ela se torna uma, a razão lhe recomenda acreditar que isso não concerne a ninguém. Ela não ama as indiscrições, mas somente as tolera. E fica claro que ela as despreza e que tem esse direito. Seu esforço sempre recomeçado consiste em representar para si mesma o tempo em que ela era “criança”. O que quer dizer que, em espírito, para encontrar suas referências, uma personalidade se reporta, apesar dela mesma, ao passado, e ama, a não ser por motivos de saúde, tornar-se de novo pequena. (…) Suas qualidades, suas disposições, seus dons permanecem para sempre sua propriedade secreta desde que ela acredite que ninguém delas sabe. É uma simples necessidade de pudor que reclama seus direitos. (…) O que a caracteriza é que ela forma um domínio por ela mesma, que ela se refaz nova a cada dia, mas certamente por cortesia, ela aceita que se brinque com ela, sabendo que não está só no mundo e que há um sentido em representar alguma coisa para os outros, não importa o que. Não importa o quê? Pouco lhe importa. Sua estrada passa pelos louvores e reprovações, uma outra estrada a corta, pelo meio. Ela é, ao mesmo tempo, sua própria criança e sua própria professora. Ao mesmo tempo, sempre e nunca perdida. (…) Ela se extrinca dos abismos se agarrando a suas recusas, e se regozija, se exaltando à luz de suas minúsculas alegrias. Reerguer-se docilmente a cada queda, é, no entanto, alguma coisa.” Esse pedaço de crônica, ou de redação, como dizia seu autor, intitulado Era uma vez uma espécie de personalidade, traça um retrato imaginário e mnemônico de Clarice Lispector. Trata-se de uma homenagem? Não. Havia sido escrito quando ela nada havia publicado, quando ela aprendia a ler em Recife, entre 1925 e 1930. E sim: em uma de suas Inquisições, a respeito de Kafka, Borges sugere que o leitor invente, para o autor, seus precursores. Enquanto está em Berna, o escritor suíço-alemão Robert Walser se inventa um alter-ego, o descreve. Será seu sucessor. É ela. É provável que Clarice Lispector, mesmo ao longo dos três anos de sua estadia em Berna, não tenha jamais ouvido falar em Robert Walser. Por conta própria ele fora internado em um asilo em 1933, para lá ficar até o natal de 1956, quando morreu durante um passeio, desabando inteiro sobre a neve, de chapéu e bengala, enquanto um de seus amigos o fotografava. Era então um escritor que parara de publicar há mais de uma decada. Ele estava destinado a só sair do esquecimento e conquistar um público fervoroso bem depois de sua morte. Em Roma, De Chirico fez o retrato de Clarice Lispector no dia em que terminava a Segunda Guerra Mundial. Gritos de alegria os surpreendiam enquanto a modelo posava. O retrato é, como então o pintor, acadêmico. Telepaticamente, Robert Walser, em uma de suas seiscentas páginas escritas a lápis, cada caracter não passando de um a três milímetros de altura, esboçou a verdadeira Clarice Lispector vinte anos antes.

Uma espécie de personalidade? Sim. Mulher culta? Sem dúvida. Timidez ousada, audácia secreta. A extrema elegância habitada como que por obrigação civil. Um estilo diferente a cada vez que é retratada. As maçãs do rosto salientes, as altas sobrancelhas bem delineadas, os olhos afilados, porte e rosto de soberana. Colares numerosos, raros anéis, nenhuma aliança. Na mão direita um cigarro, frequentemente situado entre o dedo médio e o anelar, como o escritor francês Georges Perec. Na França, mais do que os homens, as mulheres se interessam por ela, que nunca quis ser adequada, ela conhecia o feminismo das mulheres, ela é um escritor, não uma escritora, escreve ela. Mas ela sempre quis pertencer, escreve ela. Pertencer à literatura brasileira, ela, com seus traços de Mogol. No entanto, não é certo que pudesse declarar, como Faulkner, que, se ela não houvesse vivido, um outro escritor teria escrito sua obra. Ela sozinha forma um domínio, sem desejar jamais ser uma exceção. “Se digo ‘eu’ é porque não ouso dizer ‘tu’, ou ‘nós’ ou ‘uma pessoa’. Sou obrigada à humildade de me personalizar, me apequenando, mas sou o és-tu”, escreve ela em Água viva. Para epígrafe de seu romance A paixão segundo G.H. ela escolhe uma frase de Bernard Berenson, como um espelho diante dela. Diz-se que suas crônicas jornalísticas, reunidas sob o título de A descoberta do mundo, são mais fáceis do que seus romances. “Ela aceita que se brinque com ela, sabendo que não está só no mundo”. Alterna trechos, conselhos, narrativas concernindo seus filhos, suas empregadas, os motoristas de táxi, animais, insones, um suéter. São envios, discursos dirigidos, mensagens, variantes sobre o que faz bater o coração. Às vezes, lembra o diário íntimo daqueles que não o tem, como havia dito um apresentador de televisão a respeito das canções de um famoso cantor de operetas francês por ocasião de sua morte. Classificada como hermética, e ela admitia esse adjetivo, ela se preocupa de se traduzir para seu público que compra o Jornal do Brasil. Suas crônicas são, para seus leitores, uma resposta nobre, leal, e são também a apoteose de cada sábado. Ela lhes confia seu remorso, por exemplo: retomando a epígrafe de Bernard Berenson que havia utilizado para o romance A paixão segundo G.H., ela escreve, em 25 de Abril de 1970: “Mas cometi um erro. Não a traduzi, a deixei em inglês, esquecendo que o leitor brasileiro não é obrigado a compreender uma outra língua. Eis aqui a tradução: ‘Uma vida plena pode ser aquela que alcance uma identificação tão completa com o não-eu que não haja mais um eu para morrer’. Em inglês, essa frase é mais bem acabada, e igualmente mais bela.” (Eis aqui a frase original: “A complete life may be one ending in so full identification with the non self that there is no self to die.”) Por essas crônicas, ela recebe dinheiro. Ela precisa. Ela escreve. E faz vitrine. Sob vários pseudônimos, ela soube falar tão bem da moda, de produtos de beleza, de receitas de cozinha. Ela cumpre o seu papel, retoma as frutas e espinhos de cada semana, em absoluta independência diante da atualidade. É cronista mesmo quando, duvidando que possa sê-lo, se sente uma neófita. E, no entanto, ela tranquiliza seu círculo de leitores que teme que ela pare de escrever romances. É endiabrada, ardilosa. Às vezes, nos introduz em seu ateliê, retoma textos anteriores, muito mais antigos, os reformula. Outras vezes, os sábados trazem trechos de romances por vir. Sabe o que faz, mas deixa transparecer o contragolpe do esforço, a insônia. Ela não esconde o jogo. Escreve enquanto os leitores dormem e bebe café fraco e sem açúcar. Não há com quem falar ao telefone a essa hora. Ser cronista é ser cívica, ou seja, propedêutica, mas ela não sabe ao certo o que quer dizer a palavra propedêutica. Não importa se essa palavra não leva a nada. Levará talvez somente à nostalgia de não ter nascido animal. Quando ela vai ver um filme que lhe aconselhamos porque a atriz se parece com ela, esta a agrada, mas é com o cavalo negro do filme que ela se identifica, com o modo dele balançar sua crina como ela às vezes jogava para trás seus cabelos em uma tentativa de libertação. Mais tarde ela identificará o cavalo. Um cavalo negro a habita, selvagem e suave, que come em sua mão e que, quando ela morrer, buscará outra casa. Quando seu tradutor americano lhe explica que acha a sintaxe de Guimarães Rosa mais simples que a dela, ela protesta: Eu, ter uma sintaxe? De jeito nenhum. A noite é a sintaxe. E o que a cerca, e a insônia, e os cigarros e a pequena máquina de escrever Olympia, posta sobre seus joelhos como uma pessoa pequena que lhe obedece, e o cachorro Ulisses perto dela e tenazes lembranças do silêncio. Um certo Ulisses, um Ulisses humano, louco por ela, morava em Berna e deixou Berna para dela fugir. A lembrança do silêncio está atada à madrugada de Berna. Vinte anos depois de ter deixado a Suíça, ela retorna em várias crônicas de A descoberta do mundo. Chamava a Suíça de cemitério de sensações. Ela tem um destino geográfico. Clarice Lispector vem de uma pequena cidade na Ucrânia, Tchechelnik, Clarice Lispector cresceu em Pernambuco, Clarice Lispector passou por Nápoles, Clarice Lispector viu a Esfinge, Clarice Lispector viveu no Rio nos anos em que este ia perder e cedeu seu estatuto de capital, Clarice Lispector, um pouco depois do fim da segunda guerra mundial, passou por Berna, capital da Suíça, e, casada com um diplomata, teve de permanecer ali por três anos.

A Suíça apresenta, entre outras, uma característica errônea e uma lendária. A errônea:  não se aceitam cachorros nos hotéis, o que obrigará Clarice [Lispector] a se separar da mais pura criatura de Nápoles, que ela encontrou e comprou na rua, seu cachorro Dilermando. A segunda: é a pátria de uma flor, a edelvais, a “rainha dos alpes”, que só se colhe a três mil e quatrocentos metros de altura. Essa edelvais, Clarice [Lispector] a menciona na crônica De natura florum de três de Abril de 1971, pequeno dicionário instrutivo e sensório de flores. Em uma segunda versão do texto integrado a Água viva, ela dirá “Estou com preguiça de falar da edelvais.” A Suíça a esgota, a extenua, mas várias vezes em suas crônicas ela não pode deixar de voltar a Berna, fortaleza e plataforma do exílio.

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