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Mitos da Nova Música #1

Mitos da Nova Música #1
[a serem desmistificados]

This is something revolutionary and new in music, the idea that we can now not only sing music or play it on constructed intruments, but also create our own sounds for each new piece. That we know how particular sounds for each new piece. This is a totally new horizon for the whole of Western music.
Karlheinz Stockhausen

Mito 1: Esquecer os instrumentos tradicionais
Cordas? Sopros? Piano? Se você acha que vai encontrar algum tipo de instrumento tradicional em festivais de música experimental, como o Novas Frequências (em sua quarta edição, até 14 de dezembro) e o Multiplicidade (cuja décima edição encerrou semana passada), esqueça. Eis, não uma norma, mas um dispositivo recorrente: nas apresentações de Herman Kolgen, Rashad Becker, Aki Onda, Nonotak e Franck Vigroux, vê-se os músicos solitários no palco, diante de toda sorte de gadgets eletrônicos – de distintas eras tecnológicas, dentre sintetizadores, samplers, walkmans, antenas de TV etc. – dispostos horizontalmente sobre uma mesa. Uma espécie de gabinete aberto, portanto, onde o artista, tendo à sua disposição uma mesa de operação, compõe-performa frontalmente para a plateia os seus números musicais.

Sendo frequente, tal disposição cênica se repete na única medida em que enfatiza a diversidade de propostas. Vigroux investe em um comedimento performático, manipulando cirúrgica e eroticamente os canais e botões que resultam em uma experiência pungente de noise audiovisual. Onda, por sua vez, propõe outra espécie de transe musical, sugestiva de rituais religiosos (o fato de o artista japonês estar sentado de lótus durante a maior parte de sua performance só faz comprovar essa espécie de experiência místico-selvagem). Nonotak parece apostar em uma perfeita (e discutível) tradução tecnológica entre o elemento sonoro e o visual, estando a dupla de artistas dentro de uma jaula triangular transparente através da qual se transmitem os estímulos audiovisuais. Tanto Kolgen quanto Becker propõem formas distintas de situações cinematográficas: seja pelo deslocamento aéreo entre diversos sons e imagens apropriados de fenômenos sísmicos de territórios remotos transmitidos em tempo real; seja pelas paisagens sonoras não figurativas criadas a partir da composição de elementos eletrônicos diversos. Eis, com isso, aquilo que os cinco músicos apresentam em comum: a solidão do performer, em companhia única do enorme acervo de sons escondido sob os diversos instrumentos a serem manipulados.

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Se assim é, que não haja instrumentos tradicionais, é algo que, em termo gerais, deva-se constatar. Mas não se trata, uma vez mais, de preceito normativo. Dentre as ferramentas utilizadas por Onda, encontram-se uma flauta e pratos; Lubomyr Melnyk propõe o seu veloz fluxo contínuo com nenhum instrumento a não ser o bom e velho piano enquanto Ashey Paul lida com saxofone e violão. A rejeição aos instrumentos tradicionais por parte da nova música nada mais é, portanto, do que um mito caduco. Constata-se, por outro lado, aquilo que Stockhausen sintetizou muito bem: a diversidade de métodos compositivos, maneiras plurais de se fazer música.

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Admitamos, porém, a cena frequente acima descrita. A partir dela, podemos indagar a respeito das interseções entre composição e performance nestas criações. Considere-se, a título de comparação, a clássica separação entre uma atividade e outra: o compositor seria o responsável pela definição da disposição relativa dos sons e dos instrumentos, delegando aos músicos a responsabilidade de concretizar a lógica composicional registrada na partitura. Trocando em miúdos, o compositor deteria a razão e o músico, a ação. Ora, os casos aqui considerados apresentam, em sua grande maioria, obras abertas, fundadas em um mashup entre os processos inacabados de composição e os de apresentação pública. Não à toa, os performers são os próprios compositores que têm a seu dispor tanto repertórios pré-gravados e pré-programados quanto aparelhos que os permitem manipulá-los no hic et nunc da apresentação musical. Talvez seja a dupla característica desses músicos – compositores e performers – que produza um poderoso elo entre as esferas aparentemente antagônicas da magia e da tecnologia. Pois, em muitos momentos, a produção musical se faz misteriosa, já que não conseguimos observar detidamente o processo de fabricação do som: se os aparelhos eletrônicos configuram-se como caixas-pretas miniaturizadas cujo funcionamento interior desconhecemos (tal como descreve Vilém Flusser), os músicos, muitas vezes, são mudos em suas manipulações de fios e botões, sem oferecerem a nosso olhar um virtuosismo performático. Há, portanto, mágicas discrição e impenetrabilidade de instrumentos e compositores-performers. Pois a experiência de tais idiossincráticos experimentos difere, e muito, do esforço do jazzista traduzido em transgressão harmônico-melódica de temas conhecidos de antemão.

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Aki Onda figura entre as exceções. Sentado no chão do tablado, o artista japonês manipula walkmans, amplificadores e demais aparelhos como se estes constituíssem extensões de seu corpo. Aos gestos de Onda estreitamente vinculados às interferências sonoras, tem-se também a espacialização musical resultante dos deslocamentos que o músico realiza dentro do teatro. Estas trajetórias vêm-se somar aos percursos que o artista realizou em sua residência no Rio de Janeiro, nos quais coletou inúmeros fragmentos do ruído carioca, todos registrados em fitas-cassete. Há, portanto, percursos de segundo grau, quando o performer anda com o som gravado de suas andanças entre a plateia. Curiosa nesta performance é a tensão entre figura e fundo (sonoros): por vezes, os gestos de Onda conduzem ao primeiro plano determinados sons, enquanto que outros permanecem ao fundo; por vezes, o artista se camufla na cena, não havendo aí hierarquias audiovisuais. A menção ao par conceitual desenvolvido pela Gestalt não parece gratuita: de fato, na performance do músico japonês, as imagens produzidas ora estão associadas às fontes reconhecíveis (de maneira inversa, por assim dizer, à dissociação entre o som e a sua fonte pressuposta na música concreta de Pierre Schaeffer), ora parecem remeter aos rituais primitivos.

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Mesmo que aponte para dimensões audiovisuais reconhecíveis (o que o  aproxima de John Cage), a música de Onda se afasta – e muito – do procedimento pós-moderno de artistas como Christian Marclay e John Oswald, visto as imagens exibidas não resultarem de uma apropriação do artista do grande banco de dados visual de nossa indústria do entretenimento. Por outro lado, o epíteto neo-modernista – referente àqueles artistas que, em um revival do purismo greenbergiano, lançam mão de estratégias de abstração, de redução e de auto-referencialidade a fim de valorizar o ato sonoro per se – não parece igualmente adequado. Pois, a ancestralidade de Onda, se lida com ruídos passíveis de reconhecimento, não é de fácil classificação, se institui um espaço mítico, não reforça mitos.

Próximos [possíveis] Mitos:
Mito II: Não se dança na Nova Música
Mito III: A revolta do som frente à hegemonia da visão
Mito IV: O que há de novo na Nova Música?

Categorias: Blog. Tags: Aki Onda, Ashey Paul, carrossel, Christian Marclay, Franck Vigroux, Herman Kolgen, John Cage, John Oswald, Karlheinz Stockhausen, Lubomyr Melnyk, Música, Nonotak, Pierre Schaeffer, Rashad Becker, Sound Art e Vilém Flusser.