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MIT_SP – CASTELLUCCI: Graças a nós

“Graças a Deus, não sou crítico!”: Foi a primeira coisa que pensei depois que aceitei escrever sobre minha experiência em Sobre o Conceito de Rosto no Filho de Deus, de Romeo Castellucci, no auditório do Ibirapuera, como parte da 1ª Mostra Internacional de Teatro de São Paulo.

Pois é, não sou crítico. Graças a Deus! Não preciso emitir juízos, e muito menos tenho a responsabilidade de dizer algo inteligente. Ainda mais sobre a obra de um dos principais diretores de teatro da atualidade.

Como artista que eu acho que sou, prefiro contar uma história. A minha história com essa peça, da qual já tinha ouvido falar há três anos, com um título estranho, de um diretor que eu já admirava. Ouvi falar dela por causa de uma polêmica envolvendo católicos radicais franceses – sim, eles existem -, que tentaram à força impedir sua apresentação.

E eis que, anos depois, me encontro sentado em frente ao cenário.

Logo no início, um som desagradável, que não acabava nunca, me deu a sensação de que o propósito daquilo tudo fosse talvez realmente apenas chocar pessoas (como os católicos radicais franceses). Nenhum problema com isso, mas quando tem algo a mais envolvido, a coisa tende a ficar mais interessante.

Acabado esse preâmbulo, o que se passou então foi absolutamente diferente: numa sequência naturalista, um filho ajuda um pai muito velho que não consegue conter suas fezes. Tudo é tão real que eu e meu amigo chegamos a sentir um cheiro de merda. Mas, quando a situação atinge seu ápice, o próprio ator que faz o pai derrama sobre si mesmo aquilo que pareciam fezes, revelando o artifício (e fazendo com que eu e meu amigo imaginássemos que talvez alguém tenha peidado mesmo perto de nós, quem sabe, induzido pelo próprio espetáculo). O público oscilava entre uma tensão e um riso nervoso que às vezes explodia isoladamente.

Eu oscilava entre esse riso nervoso e o choro. Aquele Jesus olhando imenso pra nós por trás da cena, de olhar compassivo e benevolente, e aquela situação ao mesmo tempo tão trivial e trágica à sua/nossa frente. Lembrei do Walmor Chagas, que deu um tiro na cabeça porque não queria usar fralda geriátrica. Lembrei da minha avó, falecida há pouco mais de um ano, aos 94 anos, sendo cuidada por minha mãe. Lembrei de mim, num futuro já não tão distante quanto eu poderia imaginar há alguns anos atrás. E chorei. E ri, porque tem um grotesco nisso tudo que é engraçado mesmo, por mais trágico ainda que seja. Aliás, sinto que em grandes obras de que me lembro de ter assistido isso está sempre entrelaçado.

E eis que, no auge do meu envolvimento com o espetáculo, flagro uma mulher sentada à minha frente comendo um bombom, tranquilamente, como se estivesse assistindo a coisa mais trivial do mundo. Ela parecia ser parte do espetáculo, comendo seu bombom marrom em câmera lenta. Às vezes, a arte transborda para além dela mesma, estendendo seu sentidos ao seu próprio entorno, e dando uma “mãozinha” ao criador. E essa é a alquimia do teatro, seu incontestável poder.

O espetáculo não parou por aí. Crianças entram e jogam granadas na imagem de Cristo ao som de uma bola numa quadra de basquete, e, no final do espetáculo, a merda cênica escorre da imagem de Jesus, que depois é rasgada, e, por baixo dela, surge a frase, retroiluminada: “Você é meu pastor”, que se transforma em “Você não é meu pastor” com esse “não” meio surgindo e sumindo.

Sou católico de formação. Até hoje luto pra jogar fora certos hábitos ancestralmente incutidos por milênios de uma civilização cristã, o que Nietszche tanto atacava, por exemplo. Estar ali foi como se eu tivesse participado de um rito, violento e cruel, ou recebido um tipo de cirurgia espírita. Que decretasse o cessar de uma força que opera na vida das pessoas à revelia delas mesmas. Libertador. Para que talvez, um dia, ao invés de dizermos “Graças a Deus”, possamos dizer “Graças a nós”. Ou sei lá a quem.

Categorias: Blog. Tags: carrossel, Mostra Internacional de Teatro de São Paulo, Romeo Castellucci e Walmor Chagas.