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Memórias em transe

2017_08_31_Marco Andre Nunes_Retratos_IMG_3542Por Marco André Nunes |

“Guanabara Canibal” foi um trabalho árduo que exigiu toda a nossa energia para sua concepção, criação e execução. Pra mim, que fui alfabetizado e tive as primeiras aulas de História no final dos anos 70, os livros diziam que os indígenas faziam parte de um passado longínquo e que os meus parentes haviam aportado aqui em caravelas e heroicamente fundado a cidade. Nada disso. Ter mergulhado nos últimos meses tão intensamente em nossa história e nos oceanos da criação foi transformador. Aqui, algumas breves ideias, informações e reflexões. Espero que elas tornem a experiência dessa obra mais interessante.

TRILOGIA DA CIDADE

“Guanabara Canibal” é a obra que conclui um ciclo de cinco anos de pesquisa, reflexão e elaboração cênica, que teve como objeto o Rio de Janeiro. Propomos outras narrativas, outros olhares, outra simbologia acerca da nossa cidade. Revimos sua história, reencontramos sua geografia e nos assombramos com sua política. A trilogia teve início com “Cara de Cavalo” (2012), que aportava na antiga Favela do Esqueleto, hoje a Uerj, no ano de 1964. O espetáculo construía uma narrativa poética acerca do bandido pé-de-chinelo, alçado pela imprensa à condição de  inimigo público número 1 da cidade e perseguido até ser chacinado por um grupo de policiais que ficaria conhecido como Esquadrão da Morte. “Caranguejo Overdrive” (2015) fala do antigo mangue que foi aterrado na segunda metade do século XIX, atual Praça Onze; expõe também a violência higienista das remoções forçadas em prol das chamadas “reformas urbanísticas”.

ESTRATÉGIA

As manifestações populares que abalaram o mundo a partir de 2011 (uma onda de  protestos que se iniciou na Tunísia e chegou ao Bahrein, Iêmen, Líbia, Síria, Madri, Barcelona, Atenas, Tel Aviv, Nova York etc…) tomou conta do Brasil em 2013, com tal estrondo que seu tremor não cessou até hoje. As jornadas de junho tomaram os espaços públicos, responsabilizaram o poder financeiro e governamental pelas consequências de sua insensibilidade social. Os movimentos recusaram-se a ser representados e dirigiram suas críticas mais contundentes contra as estruturas do poder representativo. De lá pra cá, tudo parece ser ainda mais grave, tudo pede urgência, tudo precisa ser dito. No entanto, dar conta do agora no agora, responder ao presente em sua própria temporalidade,  retratando seus acontecimentos imediatos pode, em função  de sua instantaneidade, não ter a reflexão necessária e, assim, é possível que a proximidade do agora venha reduzir a experiência (em cena) de entrar em contato com ele. Nossa estratégia, então, para abordar o presente foi rumar para o passado. Acredito que esse distanciamento, esse deslocamento temporal em direção a nossa história permita que o espectador, ao redescobri-la, estabeleça um diálogo profundo com o presente e adense sua percepção deste. Quão mais grave se torna o presente, mais longe recuamos no passado. Depois de estarmos nos tempos do golpe militar, da Guerra do Paraguai, chegamos agora no ponto mais distante: a guerra que originou a fundação do Rio de Janeiro.

GUANABARA

Há quase  50 mil anos, homo sapiens que viviam na Sibéria atravessaram o Estreito de Bering e iniciaram o povoamento da América. Estudos recentes levantam a possibilidade desta aventura ter se iniciado antes da diferenciação fenotípica que originou as raças. Isto é, todos eram muito parecidos — os que ficaram e os que vieram. Não havia ainda os traços brancos, negros, asiáticos… Especula-se ainda que todo o continente foi povoado a partir de um pequeno grupo que continha pouco mais de uma dezena de mulheres. Nossas Evas.

Quando as forças de ocupação portuguesas chegaram nas praias da Guanabara, no século XVI, as raças já eram muito diferentes. O brancos, ao se encontrarem com os nativos, não lhes reconheceram a humanidade. Nesse momento, a América contava com 100 milhões de habitantes, era mais populosa que a Europa e possuía uma tecnologia mais sofisticada, ao menos nos planaltos andino e mexicano. Isso sem falar na óbvia superioridade no que se refere a higiene, saúde e felicidade. Naquela época, todo o litoral que vai do sul do Espírito Santo ao norte de São Paulo era dominado pela etnia guerreira dos tupinambás.

CANIBAL

A vingança era entendida pelos tupinambás como algo espiritual, que os conectavam com seus antepassados. Ao se vingar de um inimigo, o guerreiro justiçava seu parente que foi morto por aquele e abria caminho para que os parentes daquele também o justiçassem. Esse moto-contínuo tornava o ato da vingança algo vital: promovia a recuperação do passado ao mesmo tempo em que criava um estímulo para o futuro. O ápice da vingança e maior evento realizado pela comunidade era o ritual canibal, no qual os antepassados eram vingados por toda a tribo, que, junta, devorava o corpo do inimigo. Este ritual era totalmente codificado e sistematizado, com regras estritas conhecidas por todos os participantes, inclusive a vítima. Ao fim de  três dias de festa, o desfecho de todo esse processo restaurava a ordem e a integridade do grupo. O sacrifício humano também contribuía especialmente para configurar a estrutura social e o funcionamento da sociedade tupinambá.

GUERRA

O Rio de Janeiro foi fundado após os tupinambás resistirem por quase dez anos aos ataques portugueses. A primeira aldeia a ser destruída na Guanabara se situava onde hoje são os bairros do Flamengo e do Catete, e se chamava Carioca (Kariauc, Karióc  Kariác  ou ainda a Carijó-oca). Todas as outras aldeias tupinambás do entorno da Baía foram igualmente exterminadas. A população indígena das Américas em pouco tempo foi reduzida a 5% do que havia aqui antes de os brancos chegarem. Durante 500 anos, o Estado brasileiro fez de tudo para exterminar os povos originários e ainda o faz com a PEC215 , Belomonte e, hoje, a extinção da RENCA.

ÍNDIOS

Os indígenas foram os primeiros a se rebelar contra o Estado brasileiro, e hoje eles nos representam muito mais do que esse modelo de civilização que só serve aos poderosos, aos não índios. Todos os povos igualmente perseguidos têm em seu exemplo de resistência através do tempo uma grande inspiração: negros, lgbt, mulheres, excluídos…

CAMPO DE BATALHA

Até agosto de 2017,  foram mortos 600 moradores de comunidades pela polícia, foram assassinados mais de 100 policiais, os funcionários públicos e aposentados tiveram seus salários saqueados pelo governo, postos de saúde estão sendo fechados, teatros estão sendo fechados… Talvez o que mais assuste seja o estranho fato de que tudo isso pode soar com alguma parcela de normalidade. O Teatro, arte da presença, que nasceu das forças ritualísticas, pode invocar toda a sua ancestralidade e pretender nos acordar, perturbar, confundir, desnortear e nos fazer gritar, pensar, vomitar, sair do lugar. Talvez hoje, antes  mesmo da boa ideia e do apuro técnico, devamos proporcionar uma experiência que afete profundamente o espectador, o sensibilize e atualize todas as suas faculdades: espirituais, estéticas, intelectuais, sensuais etc… Hora de criarmos obras sem embaraço, sem medo de soar exagerado ou pretensioso. Temos que pretender responder à realidade na mesma medida e intensidade com que ela nos fere… Contra-ataque. Algumas doses de utopia.  Contudo, é difícil nos libertarmos da chatice do bom gosto minimalista em que até a contestação é contida, clean, sofisticada… Hora do Teatro ousar ser importante.

CARIJÓ-OCA

O fato dos nativos dessa cidade se orgulharem de serem chamados de cariocas dá uma grande esperança.

“Nunca fomos catequizados. Fizemos o carnaval.” (Oswald de Andrade)

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Marco André Nunes é diretor de “Guanabara Canibal”, em cartaz no CCBB-Rio até 15 de outubro.

[Foto: João Julio Mello/ IMATRA]

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