“Joguem minhas cinzas sobre Mickey” (no original Arrojad mis cenizas sobre Mickey) é um espetáculo do espanhol Rodrigo García, exibido em Aubervilliers (França), em fevereiro de 2015.
Não estou no Rio, estou em Paris. Então escrevo do passado e do futuro. Escrevo do sonho e do pesadelo do brasileiro, do que a gente gostaria de ter, sem o que a gente já tem. Pra ter um, deve-se perder o outro, não tem jeito. Na nossa vida binária toda escolha é invejosa de seu oposto.
As cinzas de García também seguem a marcha da dualidade. Se sonho é o que eu desejo, então pesadelo é o presente? Ou seria o contrário?
Em um dos textos ditos pelos atores ora ameaçados por cabos em chamas, ora encobertos em mel e cabelos, fala-se de um lago visto do avião, de um passageiro que fita a água e imagina o momento que irá vê-la de perto. Chegando lá, há gente sentada nos bancos feitos pra se admirar o lago, há mães que rogam a seus filhos para que não caiam no lago, há quiosques que vendem souvenirs do lago, chaveiros e camisetas com imagens do lago, há também locais feitos especialmente para se tirar fotos com o lago, entre outros periféricos construídos à partir do monumento natural.
A este lago pode-se dar o nome de monumento, pois ali ele já se tornou jazigo.
O sentimento não vem do passado nem do futuro, é a ficção científica do presente: enquanto penso que aqui a monumental Fondation Louis Vuitton é sempre mais atraente do que o jardim ou a floresta que a rodeiam, lembro que não existe comparação mais apropriada do que a Lagoa Rodrigo de Freitas ou a Baía de Guanabara. Recordações do que um dia foi a natureza, ambas são enaltecidas como atrações visuais, cinzas-monumento da cidade maravilhosa.
Na Lagoa carioca eu, que nasci em 87, só vi nadar os meninos da favela, talvez alheios aos avisos de que essa água tem hepatite. Invejei a liberdade do risco. E olhei pra Lagoa como nunca tinha olhado antes: como se fosse uma lagoa. O mesmo aconteceu com a Baía, quando atores de uma companhia estrangeira vieram ao festival e mergulharam na praia de Botafogo, e eu pensei: sobreviveram mesmo sem anticorpos!
Em Paris, monumento a céu aberto, é como se a cidade que é vista e fotografada diariamente por milhares de turistas de fato já não existisse. Talvez se suas câmeras fossem analógicas, os visitantes veriam a realidade ao revelarem seus filmes: a cidade foi bombardeada e só restaram os escombros dos palácios. Da Torre Eiffel, apenas a réplica de plástico com luzes bruxuleantes vendida pelo imigrante ilegal do Mali e fabricada lado a lado da réplica do Cristo Redentor na linha de montagem dos presentes agora enviados da China para o mundo.
Mas não é isso que se vê, já que os aparelhos digitais nos fazem evitar nossas próprias fotos, armazenando as imagens do mundo em uma nuvem infinita que torna tudo homogeneamente nublado.
Nesta paisagem gris, me pergunto o quanto não nos tornamos nós mesmos monumentos do que foram os serem humanos do nosso período histórico, modelos animados e em tamanho real da sociedade de consumo que ansiosamente ou silenciosamente aguarda seu próprio fim.
Em plena quarta-feira de cinzas, entre as imagens sociais pálidas do carnaval dos outros, aceito a desconstrução do homem antropocênico proposto por García, e desejo que meus restos sejam espalhados sobre as fantasias frágeis, as estruturas de isopor e as aglomerações efêmeras da festa da carne. Também sobre os arranha-céus, as Kalashnikovs, os supermercados e os reservatórios sem água: tudo isso (ou toda essa merda) sou eu.