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Here We Are: o lugar de Judith Malina

Logo após o término de Here We Are, engatei em uma conversa com o ator Fabian Zarta, que havia sido o meu guia no espetáculo (a plateia é dividida em pequenos grupos e todos possuem uma orientação de um ator do Living Theatre). Neste breve encontro, em meio a um ou dois shots de vodka infusion, notei que, enquanto relatava as minhas impressões da peça, por meio do estabelecimento de relações com outras poéticas teatrais históricas e recentes (em especial aquelas com as quais havia acabado de tomar contato, por ocasião do Under The Radar), meu interlocutor pouco ou nada sabia a respeito da história do teatro. Tampouco era ele um ator experiente, sendo aquela peça um dos seus primeiros trabalhos na área.

Um certo mal estar pairou então. Estaria eu exercitando uma certa arrogância intelectual ao desfilar diante do ator um certo conjunto de nomes e fatos ou, por outro lado, estaria ele revelando toda a sua ignorância ao desconhecer a história de seu ofício? Como, afinal, lidar com o conhecimento? Ou melhor, qual o lugar do saber?

Fundado em 1947, o Living Theatre (algo como teatro vivo, ou vivente) é um dos grupos mais tradicionais de Nova York. Reconhecidos mundialmente pelo seu engajamento político e pela vontade manifestada na maioria dos seus espetáculos em conduzir a sociedade a um sistema de mútua cooperação e igualdade, Julian Beck (falecido na década de 80) e a hoje octagenária Judith Malina estiveram à frente de cerca de cem produções teatrais, exibidas não só em Nova York, mas em diversos locais do mundo. Já compõe a história do teatro brasileiro a passagem de Beck e Malina por aqui, quando, em 1973, foram presos durante o Festival de Inverno de Ouro Preto em decorrência da repercussão de suas apresentações. Se narrativas como esta sublinham a importância do grupo para a história do teatro, este mesmo movimento, de “historicização”, ou ainda, em uma analogia à mise en scéne, de mise en histoire, levanta questões quanto à compreensão e à pertinência da atividade política do grupo, hoje, em 2013.

A história é, de fato, o objeto temático de Here We Are. Zarta e seus quatorze companheiros, todos vestidos de preto, ficam, cada um, responsável por pequenos grupos (3 – 4 pessoas). Os grupos rodeiam o espaço teatral, criando a arena na qual os fatos históricos irão se dar. Desmembrada de sua forma homogeneizante, a plateia entra em contato direto com um integrante do corpo de atores, que, ao longo de todo o espetáculo, irá atuar como uma espécie de mentor, orientando seu bando em cada atividade teatral proposta na peça. Nos primeiros momentos, além de se apresentar diretamente, o mentor solicita que nós pousemos nossos pés sobre folhas de couro, delineando seus contornos com uma caneta. As folhas são então guardadas e o espetáculo, como tal, tem início.

É neste momento que os atores, alternando-se em atenção, enunciam palavras e frases de ordem, tendo uma delas permanecido ecoando em minha cabeça: somos prisioneiros do sistema. Após enjaular o público nesta prisão verbal, os homens de preto passam a revisitar movimentos políticos históricos, tais como os coletivos anarquistas franceses, espanhóis e ucranianos dos séculos XIX e XX, vendo neles modelos de inspiração para a luta contemporânea. Estas histórias são apresentadas por meio de atividades que convocam a plateia à participação, em exercícios teatrais que remetem diretamente àqueles organizados por Maria Clara Machado e Viola Spolin. Somos convidados, por exemplo, a ocupar o centro do palco para dançar flamenco, realizar ações que evocam o trabalho e a meditação, ou ainda compartilhar frases criadas a partir de cinco palavras escritas em um pequeno papel entregue a cada espectador.

A integração entre arte e realidade por meio da participação do público em diferentes níveis já é reconhecida, de forma abrangente, como um instrumento político. Poéticas teatrais divergentes em sua convergência política, tais como aquelas desenvolvidas por Zé Celso (Teatro Oficina), Amir Haddad (Tá na Rua), Augusto Boal (Teatro do Oprimido), dentre outros, apostam neste instrumento como poderosa forma de transformação social. A menção temática de histórias anarquistas parece, por sua vez, nos convidar a elaborar uma “história dos vencidos”, conforme escreve Walter Benjamin. Algo, no entanto, me faz perguntar a respeito da real eficácia política destes clássicos recursos do teatro. Melhor dizendo, em que medida o Living Theatre não seria prisioneiro de sua própria ideologia, de seu próprio sistema? Ou ainda: reconhecido pelas encenações não convencionais, ao apostar na convenção de suas não-convenções, não estaria este grupo se neutralizando? (De fato, caso quiséssemos prosseguir em uma comparação entre o teatro de Malina e aqueles de Zé Celso e Haddad, teríamos que levar em conta a utilização radical dos recursos realizada pelos últimos, que parece não haver lugar, ao menos em Here We Are, no fazer da primeira).

A remissão aos jogos teatrais mais elementares parece nos conduzir a uma definição de Here We Are como um espetáculo igualmente elementar. Outro fato que reforça esta hipótese seria o par de sandálias que cada membro da plateia é convidado a produzir manualmente, a partir das pegadas registradas pelo ator-orientador no início da peça. Este recurso franciscano é justificado verbalmente como uma maneira que o grupo encontrou para desviar-se dos encantos tecnológicos e apelos estéticos. A fabricação de sandálias, os exercícios básicos do teatro, o figurino neutro: sem dúvida, temos que levar em conta a potência transgressora destes instrumentos elementares (seria um grande erro, e até contraditório, descartá-la logo após uma abordagem da modéstia brookiana). No entanto, algo, mesmo que simples, possui sua complexidade. Qual seria esta no espetáculo de Malina?

Para alguém que pouco costuma frequentar eventos artísticos, o espetáculo atua como uma aula introdutória de teatro. Este alguém não se restringe à plateia; o próprio elenco se insere aqui; tal seria o caso, por exemplo, de Zarta. Por esta via teatral, o espetáculo convida a todos a se desinibirem, a se soltarem, de um modo terapêutico. Por outro lado, se o indivíduo possui um quadro de referências [todo e qualquer indivíduo possui, mesmo sem querer ou saber, o seu quadro de referências – claro – refiro-me aqui ao tratamento da política realizado pelas artes, tratamento este que exige argúcia crescente dada as armadilhas propostas pelo capitalismo para neutralizar as tarefas profanatórias], o espetáculo parece anacrônico. Tal anacronia (que é um das características do contemporâneo, se estamos com Agamben) é confirmada pelos comentários, de jornalistas e frequentadores do espetáculo, todos unânimes em reconhecer a importância histórica do Living Theatre. Mas, assistir a um espetáculo para ver nele as cenas históricas de outros tempos, nos conduz a seguinte indagação: o quanto aquele acontecimento teatral, diante dos nossos olhos, vale por si? Neste sentido, o reconhecimento histórico não representaria o fracasso do Living Theatre, no sentido de uma intervenção política no presente? Em outras palavras, onde está o aqui de Here We Are? Deixo a tarefa para o leitor localizar, tendo em mente a afirmação de Ronaldo Brito: “não pode haver tradição da vanguarda, a não ser como contrafação”.

(Este texto compõe o estudo Clássicos, Nova York: música, memória, lugar, cinema, publicado originalmente na edição de março da Revista Questão de Crítica e pode ser lido na íntegra aqui)

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