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Ficção e outras mentiras, em cinco tópicos


1.
Conheci a Bianca na faculdade. Ela tinha os cabelos enrolados, falava sem mexer a boca, também adorava esmaltes e cinema – eram os nossos assuntos prediletos. Juntas fizemos um curta-metragem documentário sobre o maestro Henrique Morelenbaum. Ela gostava de chegar às salas de orquestra e alisar o piano com as costas da mão: era uma pianista incrível, que havia debandado para o lado do cinema.
Tudo nela era incomum, excêntrico, e muito doloroso. Alguns amigos da faculdade a achavam estranha demais para merecer afeto; outros, como eu, não temiam aquele acúmulo de histórias estranhas. Lembro o dia em que a mãe dela a expulsou de casa: não só a enxotou do lar, mas também tacou fogo em suas roupas.
Bianca segurava a onda e não demorou a se recuperar: expulsa de casa, parte do armário queimado pela mãe, ela voltou a sorrir quando arrumou um namorado. Gabriel morava em São Paulo, mas a rotina dos dois ia bem, pois ela finalmente havia cedido à vocação musical e estava tocando em uma orquestra paulista. Um namoro perfeito, o cara certo na hora certa, e assim Bianca se afastava daquela lama familiar.
Quem dera isso durasse. Mais uma vez, veio o destino: Gabriel foi jogar futebol, infartou e morreu. Simples assim. Nunca tive tanta pena de uma amiga, eu e todo o grupo. Uma amiga dela, Carol Trovatto, de Minas Gerais, passou a se comunicar diretamente com os amigos mais próximos, e contou secretamente que, com tantos reveses, Bianca esteve à beira da loucura depois da morte do namorado. Quase se matou.
Foi um tempo de muita reviravolta, para ela e para quem vivia perto. Uma vida desprotegida, em que tudo era possível, e tudo era ruim.
Eu não via a Bianca há bastante tempo quando nos esbarramos no Festival do Rio, antes de uma sessão de Wim Wenders. Fiquei feliz por encontrá-la, ela parecia bem e tinha as unhas feitas. Perguntei a ela como andava de saúde, como ia aquele problema na cabeça – como se não bastasse, a azarada tinha tido um micro-tumor no cérebro. Bianca fez uma pausa estranha e me respondeu: “Eu te contei essa história?”

 

2.
Um amigo de faculdade me ligou no meio do expediente.
“Tenho notícias da Bianca.”
O cara quase engasgou para contar, e a notícia era tão absurda que foi difícil entender. Era tudo mentira. Bianca estava mentindo para a gente havia seis anos. Ela não havia sido expulsa de casa pela mãe. O noivo em São Paulo, Gabriel, nunca existiu – portanto, nunca morreu; a amiga mineira, Carol, também não existe. Orquestra? Que orquestra? Bianca nunca tocou piano. Os finais de semana em São Paulo eram passados na casa do pai, em Duque de Caxias. Era de lá que ela mandava os e-mails, criava os perfis no Orkut, alimentava a interessantíssima vida virtual daquela gente toda. Carol, Gabriel (e tantos outros que estou suprimindo aqui) são, na verdade, a própria Bianca, na frente do computador, fazendo perfis de Orkut falsos, enviando e-mails para amigos da vida real, criando personagens em listas de discussão.

Gabriel, Carol e tantos outros são personagens, são a própria Bianca, enganando seus amigos.

Escrevo esse texto três anos depois de descoberta a doença dela, a mitomania. Estou omitindo aqui uma série de detalhes de personagens e histórias de Bianca mitômana, todo o ardil que ela usava nas conversas on-line, os detalhes para gerar identificação entre os amigos inexistentes e nós, os reais.
Depois que descobrimos que estávamos há anos ao lado de uma psicopata, mitômana, o que quer que seja, fiquei um mês sem dormir, para desespero do meu então namorado. E com uma questão na cabeça: eu acreditei na Bianca, mas era tudo ficção.
Tomo por verdadeiras as ficções que as pessoas me contam.
Tenho como viver de outra forma?

 

3.

Na quinta passada, vi um dos solos da peça Ficção, da Cia Hiato, na Caixa Cultural, no Rio de Janeiro. Luciana Paes, atriz, abria a peça anunciando que faria um monólogo sobre a Frida Kahlo. Em um longo prólogo. Com a luz da plateia acesa, ela, Luciana, nos conta sobre sua vida de atriz e sobre a ideia para o processo de montagem. Nos avisa que é uma atriz decadente, que o projeto quer borrar as fronteiras entre real e ficção. Fala um texto e avisa que a frase não era dela. “Pareceu que era minha?” Luciana se interrompe, conta um ou outro episódio da própria vida, fala de uma irmã, de seu pai, de sua mãe.
A construção da peça, a mescla de relatos supostamente pessoais com os da vida de Frida – e um livro em que a atriz teria feito uma pesquisa – leva o espectador a um estado de permanente dúvida. É verdade ou não? Ela está falando a verdade sobre ela mesma? Sobre Frida Kahlo? Sobre a encenação que estou vendo agora, na minha frente? Aliás, essa peça vai adiante, como a atriz promete, ou não?

O limite da tensão é o espaço em que a peça se desenrola. A atriz está simultaneamente dentro e fora da narrativa. Ela se entrega à cena, e um minuto depois critica a própria performance. Entrega e crítica, em movimento circular.

Isso incomoda.
4.

Eu não me lembrava da Bianca com tanta violência fazia tempo, e passei aquela uma hora em que assisti Ficção pensando nessa história. Estava na peça e não estava. Entrei no teatro fazendo o pacto silencioso da suspensão da descrença: sentada na cadeira, queria acreditar em uma mentira bem contada, mas não podia, a atriz não deixava. Da mesma forma, acreditamos na Bianca por tanto tempo, e depois de descoberta a doença, passei um bom tempo sem conseguir acreditar totalmente em alguém. Ficou difícil acreditar. (um tempo depois, claro, isso mudou.)

A narrativa Bianca e a peça Ficção têm em comum, principalmente, a adoção de um ponto de vista de eterna dúvida. De desconfiança. Em cima do muro, sem ser guiado, eternamente na expectativa de uma ironia, ou de uma piada destruidora, é mais difícil construir. O que se constrói está sempre a beira de desabar.

Chegamos ao final do espetáculo. A atriz anuncia uma série de frases que marcou na apresentação e que não são dela, dando as fontes, que vão de Virginia Woolf e Nietzsche à própria mãe. A atriz revela a artificialidade daquilo tudo e, afinal, resolve encarar o final do espetáculo – e morre.

Acima de tudo, saio do teatro incomodada. O excesso de descrença me aflige, mas a boa execução da peça me cativa; a ironia permanente me irrita, o controle da atriz me faz admirar; a pegada contemporânea e simples me atrai. E gargalho com as piadas. O julgamento simplório do “gosto” ou “não gosto” não cabe nesse texto, mas sim o estranhamento de quem foi ao teatro e acompanhou um espetáculo que acerta ao trazer a inquietude e os questionamentos próprios da atividade artística. A interrogação se sobrepõe ao ponto final.

 

5.

Quando soube da história da Bianca, passei noites insone; naquela quinta-feira da peça, eu dormi.

Ah, era tudo de mentirinha. Era – só – teatro.

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