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Cia Hiato e os intervalos

 

Com apenas cinco anos, a Cia Hiato tem chamado atenção no circuito teatral, pois apesar de seu relativo curto tempo de existência, o grupo apresenta uma maturidade admirável tanto em relação aos temas abordados, quanto ao entendimento e à utilização da linguagem desenvolvida em cada um de seus espetáculos.

Todas as peças do grupo – “Cachorro Morto”, “Escuro” e “O Jardim” -, obtiveram grande prestígio frente à crítica e ao público, e receberam importantes indicações, como ao Prêmio Shell 2010, ao Prêmio CPT 2010, ao Prêmio CPT 2009, ao Prêmio FEMSA, entre outras. O último trabalho do grupo, “Ficção”, é formado por seis monólogos ou intervenções, e configura-se como um processo, que representa a primeira de três etapas de um projeto que resultará na peça “Duas Ficções”. Integra a companhia o premiado dramaturgo e diretor Leonardo Moreira, que vem sendo considerado destaque na cena paulista de teatro, e um elenco talentoso formado pelos atores: Aline Filócomo, Fernanda Stefanski, Luciana Paes, Maria Amélia Farah, Paula Picarelli e Thiago Amaral.

Para começar a entender o trabalho desses jovens artistas, um dado não pode passar despercebido, o nome do grupo. A etimologia da palavra hiato carrega uma série de informações, algumas delas indissociáveis das escolhas artísticas feitas pela companhia. Assim como sua nomeação, seus trabalhos evidenciam espaços vazios nas relações humanas, tanto artisticamente, no intervalo entre o palco e a plateia, como em qualquer aspecto da vida cotidiana, levando em consideração que existe ruído até mesmo entre o pensamento e a linguagem. É da investigação desses espaços que nascem os espetáculos da Cia Hiato, como uma possibilidade de preenchimento dessas lacunas, seja este preenchimento composto de ficção ou realidade.

Os trabalhos da cia partem de questionamentos muito pessoais, talvez este seja o segredo de uma comunicação tão direta com seus espectadores. As reflexões do grupo vão ganhando novos contornos de um trabalho para o outro, pois cada peça é influência para a próxima e consequência da anterior, um “infinito processo”, conforme afirma o diretor. Alguns aspectos, como os atores utilizarem seus verdadeiros nomes, estão presentes em todos os espetáculos da Cia Hiato. Desde o primeiro espetáculo, “Cachorro Morto”, a simbiose entre realidade e ficção é um tema de reflexão, mas só no último espetáculo, “Ficção”, esta reflexão ganha o primeiro plano. Mas, não se trata de uma variação do mesmo tema, e sim de pontos de vista ou da experiência destes. Por exemplo, na peça “O Jardim” o material utilizado para a construção dramatúrgica foi a biografia, através da memória dos atores e do diretor uma ficção foi criada. Embora tenha sido um trabalho intenso, nesta peça a biografia é apenas matéria-prima para a criação, contudo, no último trabalho da cia, “Ficção”, a biografia torna-se exatamente o aspecto em evidência. E, assim como a peça “O Jardim” não oferece ao espectador a memória como tema, e sim uma experiência de memória, a peça “Ficção” também parte do princípio da experiência.

“Ficção” não é teatro documentário, embora seu caráter performativo e sua dramaturgia autoral agreguem uma presença de realidade. O importante para o grupo não é trazer à cena uma situação real, visto que não acreditam ser possível excluir a representação, e sim, proporcionar ao espectador uma percepção da realidade dentro de um contexto ficcional. O que está em jogo é o hiato entre a realidade e a ficção, dentro e fora dos palcos. O quanto de representação nós experimentamos na nossa própria realidade? O quanto de realidade pode se entranhar na ficção? Qual é o limite para discernir uma da outra? Os atores utilizam suas vidas para evidenciar a nossa impossibilidade de abandonar a ficção e expor em cena as interseções entre vida e criação artística, através da sobreposição de uma dramaturgia ficcional e um estado confessional. “Ficção” é uma obra teatral dividida em seis monólogos independentes, porém complementares e ressonantes. E, além de uma experiência, no mínimo interessante, podemos esperar outras boas surpresas com este trabalho.

Categorias: Blog. Tags: Aline Filócomo, carrossel, Cia. Hiato, Fernanda Stefanski, Leonardo Moreira, Luciana Paes, Maria Amélia Farah, Paula Picarelli, Projeto Artista-Pesquisador e Thiago Amaral.