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Esta criança

Da penúltima fileira do teatro lotado do Centro Cultural Banco do Brasil, em uma sexta à noite, vi os dez esquetes de Jol Pommerat que compõem a peça Esta Criança e tratam de relações familiares – falam dos embates, projeções, expectativas e diferenças que pais e filhos enfrentam, por um motivo tão simples quanto inevitável: são filhos e pais.

Me senti muito mal. Por isso, recomendo.

Como acontece em toda peça, saio com algumas frases na cabeça – que não necessariamente são as originais, pois a memória, essa traidora, mistura o que vemos com o que sentimos e com o que queremos, e às vezes muda tudo.

Logo na primeira cena, diz uma mãe, sobre o nascimento de seu filho: “Finalmente vou poder me olhar no espelho. Esta criança vai me dar forças. Eu vou mostrar aos outros quem eu sou. Meu filho vai ter orgulho de ser meu filho.”

Em outra cena, uma parturiente, para o bebê que teima em não sair de sua barriga: “Sai de mim, eu tenho medo que você queira ficar.”

Um filho, para um pai: “Eu não te escolhi.”

O texto de Pommerat nos revela o desconforto das relações familiares: os tabus, os modelos de perfeição. Por serem esquetes, a peça não tem o tempo estendido da construção dramática, que costuma contribuir para o aprofundamento dos temas e dos personagens. Se o autor perde ao fazer essa opção, por outro lado ganha ao nos levar, a cada início de esquete, direto ao auge, ao limite da tensão. Poderia dizer que é uma peça sobre a violência: ou não seria violento o processo a que os pais submetem os filhos, engendrando-os na lógica da sociedade, conflitando o desejo dos filhos com os seus próprios?

Violência. É a sensação que tenho, na minha cadeira da fileira L. Em quantas festas de família vi e vivi aquelas emoções. Em quantas situações aqueles textos estavam ditos, embora emudecidos. Tudo tão lastimável, e tão íntimo. A plateia silencia.

Chegamos ao fim. A personagem em cena é uma mãe que está no IML, diante de um corpo que pode ser o de seu filho. No final da cena, entretanto, essa possibilidade não se confirma. Entre a loucura e a racionalidade excessiva, a personagem diz o mesmo que eu digo sobre esse espetáculo incrível, dez cenas depois, descendo a escada do teatro:

“É horrível. E eu estou tão feliz.”

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