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entrevista de Bernardo Lorga a João Cícero

JOÃO CÍCERO: Por que criação colaborativa?

BERNARDO LORGA: O colaborativo se estabelece no projeto enquanto funcionamento e  linguagem. Desde o início, escolhemos lidar com funções que permitissem uma dramaturgia individual autônoma na obra, de cada participante. O objetivo era produzir uma obra de autorias, um microcosmo atravessado de pessoas que compartilham o mesmo espaço, mas não o mesmo tempo. O ponto de encontro era o que entendiamos enquanto obra, a cena predominava e era essencial para a construção da poética do espetáculo. O colaborativo tornou-se necessário como sistema de convívio no dia-a-dia de pessoas que moram juntas ou são amigas há anos. Escolhemos nos encontrar na dispersão da multidão.

 

J.C.: Qual a participação das atrizes no processo? Você pode citar um exemplo de cada uma delas?

B.L.: Numa dramaturgia que não se sustenta nos fatos, o trabalho do ator carrega a verticalização da obra. A dramaturgia de urcrânia se sustenta nas relações criadas entre as três. 3 pontos de vista diversos e coexistentes que se equilibram na disputa de espaço. Além de serem as grandes responsáveis pela manutenção de um espaço cênico, afetivo, físico e ficcional são autoras da maior parte dos textos escritos para o espetáculo, como os monólogos. O trabalho de dramaturgia em processo foi realizado a partir das palavras das atrizes, sob um olhar arquitetônico da dramaturga para pensar unidade: inicío, meio e fim. A participação das atrizes no processo foi um exercício de autoficção constante e diário. Parte dos materias surgiram de composições individuais, como o momento das partituras individuais da Paula e da Clarice. Uma única composição coletiva deu corpo aos diálogos. Uma antiga relação entre duas atrizes (Paula e Clarice) originou um subtexto de uma dramaturgia ainda por vir. A partir dessa escolha a terceira atriz, Analu, se torna testemunha e necessária a essa relação, que só existe na medida em que é observada.

 

J.C.: Qual o sentido de Ucrânia? Por que o país do leste europeu sugeriu o título?

B.L.: Quando começamos o processo, escolhemos o nome de um livro do Lourenço Mutarelli para delinear as questões que queríamos abordar. Era ele: A Arte de Produzir Efeito sem Causa. Esse título -o mesmo do nosso blog- serviu de epílogo para o que queríamos abordar. As temáticas iniciais do projeto giravam em torno das necessidades de uma causa na construção de história pelo indivíduo, onde um elemento externo qualquer origina a ficção. Nosso incômodo partia do esforço que viamos de fabular para tentar organizar o caos, anestesiar o vazio do sentido e acreditar na concretude das coisas. Queríamos o contrario. Efeitos sem causa. Os textos começaram a ser produzidos principalmente em janeiro e fevereiro, quando suspendemos os ensaios e as atrizes precisavam continuar produzindo. O que mais abordamos foi o excesso de informação produzido pelos meios de comunicação; a linguagem interrompida dos diálogo urbanos; a solidão na multidão; o silêncio no caos da tecnologia; o verbo como manifestação de prazer e liberdade; o presente como o tempo da sobrevivência, a repetição como experiência da memória e a sensação de estar sendo observado do início ao fim.
Desta última nasceu o título “ucrânia 3”. No início de fevereiro havíamos observado pelas estatísticas do blog, que 3 pessoas o acessavam da Ucrânia. A observação se seguiu da frase “o essencial é se sentirem observadas”, oriundas do nosso primeiro contato com os estudos de panóptico do Michael Foucault. Nós não conhecíamos os três ucranianos, nem sabíamos se eles estavam olhando para a gente naquele exato momento, mas a tensão da dúvida era o que nos perturbava fisica e dramaturgicamente. “Ucrânia 3” é essa tensão que vem de fora. O controle.
No final de março resolvemos que esse seria o título da peça. Sabíamos que seu significado não ficaria claro, nem nunca fora nossa pretensão fazê-lo. O que nos atraia eram as sugestões que ele daria ao expectador, que podia se apegar ou quebrá-las. Sugere um lugar, que a peça não sustenta, porque não o é. Sugere que são apenas 3 pessoas, que estamos falando de alguma coisa que está fora, que queremos tematizar questões globais. Queríamos, com o título, produzir um efeito sem causa. Com o tempo o título se tornou mais uma sugestão de ficção resurgiu como material em uma das cenas do espetáculo em que espacializamos a cidade de Pripyat e a explosão de um reator nuclear.

 

J.C.: O processo se iniciou com o título?

B.L.: Não. O processo se iniciou com referências de literatura contemporânea brasileira, maior parte Lourenço Mutarelli, e a vontade de estudar a estrutura dramaturgica da fábula para produzir ficção.

 

J.C.: Fale um pouco sobre a partitura inicial do espetáculo.

B.L.: Tenho dúvidas de que partitura esteja falando. Vou considerar a entrada das duas atrizes e o texto dito de costas se referindo a um mofo. Esse momento inicial evidencia um primeiro grande elemento externo: o mofo que virá a se tornar céu. Esse texto partiu de uma carta escrita pela Clarice para o supervisor de locação da imobiliária do sobrado em que morávamos. Se tratava de uma reclamação e de um parecer de todos os problemas que estavamos passando no mesmo sobrado em que ensaiávamos. A falta de água, atrelada aos problemas pessoais deu à reclamação um caráter irônico e poético. Assim que nos mudamos do sobrado para a casa nova, nos deparamos com uma parece azul toda mofada. Eu pedi para que ela fizesse o exercício de escolher as partes da carta que achava que deveria entrar no prólogo e descrever o mofo se misturando com a descrição do céu, até que se transmutasse no próprio, como tinha sido nossa primeira reação depois de encarar a parede por algum tempo.

Bernardo Lorga é um dos pesquisadores convidados para o programa Pesquisa-Cena, uma parceria entre a Mostra Hífen e o TEMPO_FESTIVAL.

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