Já no fim da vida, em um leito de hospital decadente, Eulálio D’Assumpção começa a narrar a história de sua tradicional família desde os ancestrais portugueses, passando por barões do Império, pelo neto guerrilheiro durante a ditadura militar brasileira, chegando ao tataraneto garotão no Rio de Janeiro de hoje. Protagonista de Leite Derramado, quarto romance de Chico Buarque, esse ancião ganha vida em cena na montagem homônima dirigida por Roberto Alvim, atualmente em cartaz no Rio de Janeiro (no Teatro Sesc Ginástico, de quinta a domingo, até 18 de dezembro) — depois de uma bem-sucedida temporada em São Paulo, onde estreou.
Em entrevista ao site do TEMPO_FESTIVAL, Alvim discorre sobre o romance, conta um pouco do processo de criação da dramaturgia, desenvolvido a partir de um enxugamento do romance a ponto de torná-lo o que chamou de “haicai cênico”, fala sobre a escolha da atriz Juliana Galdino, sua mulher [na foto de Edson Kumasaka], para interpretar Eulálio (trabalho que rendeu a ela uma indicação ao Prêmio Shell) e relembra os graves problemas de saúde que teve durante a criação do espetáculo. Confira:
Se é que é possível resumir, de que se trata Leite Derramado? O que, na sua visão, esse livro – e, por consequência, o espetáculo – tem a dizer sobre o Brasil?
O romance expõe de modo profundamente original as raízes de nossa miséria, desigualdade e injustiça. Trata-se de uma ferramenta estética importantíssima, que pode nos ajudar a reinventar o país e nossa identidade nacional.
Que fagulha deu origem a Leite Derramado, a peça? O que, na leitura do livro, o impactou a ponto de desejar montá-lo?
Estava procurando um romance, escrito no século XXI, que tivesse a mesma amplidão poética e alcance político de obras como Macunaíma do Mário de Andrade ou Grande Sertão: Veredas do Guimarães Rosa. Quando li Leite Derramado, tive a sensação nítida de encontrar. Eulálio D’Assumpção, o protagonista herdeiro de uma família que chega ao Brasil com a corte portuguesa, repleto de antepassados aristocratas, latifundiários escravagistas e políticos corruptos, após perder tudo se torna uma vítima do sistema precário que sua própria família edificou. Trata-se de um arquétipo introjetado em todos nós, brasileiros, que vivemos construindo nossa própria tragédia…
Como se deu o contato com o Chico Buarque para propor a adaptação? Como foi essa conversa e como ele reagiu à ideia?
Liguei pro Chico em setembro do ano passado. Fui em sua casa no Leblon e li pra ele minha adaptação dramatúrgica. Ele ficou encantado e me deu carta branca para prosseguir com o projeto, assim como cedeu os direitos com exclusividade para a encenação.
Você pode contar um pouco de como foi o processo? Houve participação do Chico Buarque? Você teve carta branca para retrabalhar o texto à sua maneira?
Foram sete versões distintas do texto. A primeira foi escrita em setembro de 2015; depois, de modo árduo e obsessivo, fui reconstruindo a dramaturgia, até chegar à versão final – que, mais do que uma adaptação do romance, é uma tradução cênica do inconsciente do livro, uma fisicalização simbólica das forças que permeiam a escritura. Como o livro é sobre o Brasil, quero crer que se tratam das forças que construíram o nosso país. A peça instaura a paisagem iconográfica de nosso inconsciente nacional. Chico acompanhou todo o processo: na medida em que eu escrevia, mandava pra ele por e-mail, conversávamos ao telefone, mas ele sempre me deu total liberdade para fazer as escolhas que me parecessem mais potentes, haja vista que o suporte da literatura é radicalmente diferente da manipulação biofísica de tempo e espaço que caracteriza o teatro.
Muitas de suas montagens já foram descritas (e elogiadas) pelo sintetismo e pela densificação. Em entrevista recente, você declarou que Leite Derramado, a montagem, é um “haicai do romance”, apontando nesse sentido. Como isso se dá na sua obra e, mais especificamente, em Leite Derramado?
Procuro o conceito de síntese/amplidão: o ato preciso que pode disparar mais sentidos (e imagens e sensações…) na sensibilidade que quem dialoga com a obra. Quando encontro essa forma, sinto que chegamos à seara da poesia – e toda grande arte é poética, isto é: polissêmica.
Juliana Galdino como Eulálio – essa era uma escolha desde sempre? Como se chegou a essa feliz ideia?
Quando o Chico assistiu a estreia da peça em outubro no SESC Consolação, disse ao final que Juliana é o Eulálio que ele sempre imaginara. E ela é uma mulher de 40 anos fazendo um homem de 100… É claro que, se pensássemos a respeito de antemão, seria uma escolha complicada e provavelmente um erro. Até que vemos Juliana em cena. E então descobrimos que a arte da interpretação torna possível a transubstanciação de nossas identidades em níveis radicais.
Leite Derramado é o seu segundo trabalho com trilha do Vladimir Safatle. Qual foi o papel dele nesta montagem, e como você compara com o trabalho que ele fez em Caesar, a pela anterior?
Safatle é um compositor singular, que criou a trilha como uma espécie de ópera minimal para voz falada. Ele já tinha trabalhado assim em Caesar, e é isso que me interessa em nossa parceria: ampliar as possibilidades da voz através de sua conjugação com a música.
De que maneira os acontecimentos políticos recentes no Brasil influenciaram os rumos da obra?
Os acontecimentos recentes tornaram esta peça urgente. Porque é urgente que reinventemos o Brasil. A peça, como eu disse anteriormente, é uma poderosa ferramenta estética que pode nos ajudar nessa imperiosa tarefa de reconstrução nacional.
Em uma postagem no Facebook, você declarou que Leite Derramado parecia ser aquilo para o qual convergia toda a sua trajetória anterior, como se você tivesse se preparado por toda a vida para montar essa peça. Que sentimento é esse?
Sou diretor de teatro há 25 anos, e nesse período encenei mais de 100 peças, de autores como Shakespeare, Ibsen, Genet, Beckett, Pinter… Mas agora estou trabalhando com o romance do artista compatriota que me mostrou, quando eu era apenas uma criança, o que é poesia (através de seus discos, tocados continuamente em minha casa na vitrola da minha mãe), ampliando minha sensibilidade e dignificando a condição humana. E a obra é sobre o Brasil – sua gênese e desdobramentos, e isso justamente nesse nosso perturbador momento histórico… Tudo isso posto, posso afirmar com convicção plena: é o trabalho mais importante e complexo da minha trajetória na arte, a encenação para a qual me preparei a vida toda.
Você teve um problema de saúde às vésperas da estreia da peça. Como isso afetou não apenas a realização da montagem em si, mas impactou você, pessoalmente?
Todo o processo de criação desse espetáculo durou cerca de um ano, 24 horas por dia, todos os dias. E foi extremamente difícil, penoso, desgastante, devido à imensidão abismal do material cênico… Isso me levou a crises nervosas e doenças múltiplas (inclusive com risco de morte), tudo causado pela violenta ansiedade de fazer jus à grandeza da temática. Me custou muito, física e psiquicamente, construir essa obra. Mas agora o trabalho está feito e já posso me curar.
[foto: Edson Kumasaka]