Dulce fez parte do primeiro TEMPO_FESTIVAL (dez/2009) como processo aberto para o público e estréia agora (28/29 de maio) no 2° TEMPO no Espaço SESC. O projeto surgiu a partir do encontro de quatro atores, dois portugueses, Flávia Gusmão e Nuno Gil, e dois brasileiros Michel Blois e Thiare Maia e a busca de falar sobre algo que fosse “urgente” para cada um deles. Depois de muita troca de material, filmes, peças, livros etc. chegaram a um denominador comum: queriam falar sobre a “falta”. A dramaturgia de Dulce é resultante deste processo de pesquisa que incorporou, ao longo dos ensaios, referências cinematográficas (filmes de Cassavetes e Ingmar Bergman) e teatrais, como a peça Crave de Sarah Kane, juntamente com experimentações cênicas dos próprios atores e com a supervisão da diretora Fernanda Félix.
(vídeo do processo no primeiro TEMPO_FESTIVAL)
Partindo do próprio mote do grupo, “a falta”, é possível reconhecer a conexão direta com a peça Crave da dramaturga inglesa Sarah Kane. Desde o título – Crave, que pode ser traduzido como “ânsia” ou “falta” – a peça de Kane se revela como material em potencial para um processo guiado pelos vieses da “falta” e da “urgência”. Os trechos da peça Crave que foram incorporados na dramaturgia de Dulce, no entanto, são utilizados mais como suporte textual do que formal, no sentido estrutural da peça. Frases soltas da peça de Kane são recontextualizadas dentro de Dulce, a serviço de uma proposta formal e linguagem bem diversa da qual Crave propõe.
A estrutura dramatúrgica formal de Dulce parece ter como referência prioritária ‘Cenas de um casamento’ de Ingmar Bergman, optando por um espaço fixo da mesa de jantar e o foco nos relacionamentos entre os dois casais presentes. Apenas o início do espetáculo se desloca da fixidez do espaço situacional da mesa de jantar, ao apresentar falas que funcionam como um breve prólogo em torno de inquietações que atuam no interior da peça. Este breve momento que estou chamando de “prólogo” trabalha com um registro de atuação mais próximo à proposta formal de Crave, na qual a dinâmica das “vozes” (ou “personagens”) está descolada de um espaço regular definido. Não há neste “prólogo” de Dulce pretensões explicativas do que virá ou promessas de sentido. As questões são atacadas exatamente em pontos desnorteadores – como uma descrição técnica do buraco negro, extraída de um dicionário, em contraste com a voz de um sujeito “impressionado” com a sensação de abismo que o toma e está fora de seu controle – texto de Michel Blois – sobre “a sensação de estar diante do abismo, um segundo antes de pular”, fazendo ainda um paralelo com a questão do tempo: “imagina esta sensação ao longo de um ano inteiro”. Estes dois discursos que ora se atropelam, se complementam e se tensionam, partem de um estado de perplexidade que, de alguma maneira é reduzido (ou, forçosamente “controlado”, uma vez que a ação é situada dentro um contexto “social” onde as tensões afloram apenas em momento de crise), quando os atores passam para um registro de atuação mais próximo a um realismo psicológico predominante ao longo do espetáculo.
Um monólogo comumente extraído de Crave e interpretado fora de seu contexto original é também usado em Dulce com pequenas adaptações. Este monólogo, que é a fala mais extensa da peça Crave, funciona como uma declaração de amor. Kane trabalha aí com uma noção de fluxo contínuo, eliminando propositalmente as pontuações (e respirações de falas) convencionais, contrastando com o restante da peça Crave que é construído em sua maior parte por frase curtas. As idéias de entrega e de obsessão estão presentes tanto nas palavras quanto no tratamento formal que a autora dá ao monólogo, que atropela as pontuações e insiste em ocupar um tempo que se diferencia, pelo viés do excesso, dos ritmos de falas até então propostos. Outro dado relevante é a recepção do monólogo dentro do contexto de Crave que é tensionada pela sugestão dentro da narrativa da peça de que tal fala é uma declaração de amor de um pedófilo dirigida a uma criança. É possível notar dentro da transposição do monólogo para a peça Dulce, um deslocamento desta tensão para um desconforto bem diverso do original. No caso de Dulce, esta tensão implica na dificuldade de assistir, por parte de um dos casais presente, a declaração de amor feita pelo segundo casal, além do incômodo do próprio personagem para o qual a fala é dirigida em cena, que não consegue “receber” sem resistência a declaração de amor pública feita por sua esposa. O monólogo mencionado ganha respirações e pontuações mais “orgânicas” por parte da atriz Flávia Gusmão que o interpreta, acrescido de um jogo de pequenas interferências da parte dos demais personagens em Dulce que escutam tal monólogo, trazendo para a cena elementos que favorecem uma convenção mais realista.
Enquanto o espaço físico do espetáculo passa a ser demarcado com precisão numa sala de jantar, referencias como a localização geográfica deste encontro entre os dois casais (o português e o brasileiro) não são definidas e, segundo comentários dos atores, até indesejáveis. O que importa para o espetáculo parece ser as dinâmicas das relações em jogo – relações estas que poderiam se passar em diferentes lugares do mundo. É interessante observar que, apesar da fixidez espacial “situacional”, e de o acontecimento cênico se passar ao longo de um jantar (com uma duração próxima ao que poderia ser o tempo de uma refeição), o tempo não é trabalhado apenas de modo contínuo. Dulce opera recursos como os de repetição e cortes bruscos, pertencentes a uma estética mais usual no suporte cinematográfico. O registro de atuação dos atores, sustentado ao longo do espetáculo, que tende a uma dinâmica mais próxima a do cotidiano, acaba jogando também com a artificialidade dos cortes das cenas e suas repetições. Esta quebra do tempo ficcional contínuo permite um efeito de lente de aumento e resignificação – detalhes que vão ficando em evidência a partir da segunda, terceira repetição. Apesar de ser este um recurso possível de distanciamento, o fato de o registro de atuação privilegiar uma “organicidade” e a proposta de repetição permitir pequenas modificações na mesma cena, o efeito, me parece ser de intensificação. É como presenciar versões levemente alteradas do mesmo, como através da memória que volta, repetidas vezes, quase idêntica, mais que a cada vez oferece um novo detalhe para a percepção de determinada situação. As repetições acabam por sugar o espectador para dentro da cena, num movimento espiral que pode remeter a imagem do buraco negro usada em alguns momentos da peça, para então ser cortada bruscamente e seguir um tempo sem curvas, até uma próxima fissura de convenção temporal.