Por Cesar Augusto |
O cenário foi digno dos principais festivais de artes cênicas do planeta: entre os dias 3 e 22 de janeiro, o Santiago a Mil, festival internacional de teatro da capital chilena, apresentou, em sua 24ª edição, quase três dezenas de espetáculos, de “sala e de rua”, de cinco continentes, com a presença de países como Republica Democrática do Congo, Palestina, Síria, Líbano e Hungria. “Um palco sem fronteiras”, como conceituou a diretora da Fundação Teatro a Mil, Carmem Romero, também responsável pela programação.
O TEMPO_FESTIVAL também esteve por lá, participando da plataforma de intercâmbio e negócios Platea 17 — uma programação em sua maior parte latino-americana, voltada ao mercado internacional —, que, durante seis dias, recebeu 250 participantes, entre curadores, produtores, agentes e instituições. A partir de uma agenda repleta de atrações, entre processos, espetáculos, mesas-redondas, encontros artísticos e palestras, os participantes e colaboradores encararam o intrincado mercado das artes cênicas.
De saída, é importante registrar que, nesta edição do Santiago a Mil, o Brasil esteve de fora da programação. Apenas curadores e representantes culturais privados estiveram presentes. Nesta corrente “sem fronteiras”, aberta para o mundo, numa relação de interesse mútuo, na qual o idioma não é percalço, o Brasil ficou bem distante no que se refere à sua expansão e, principalmente, às conexões estratégicas para o seu desenvolvimento no mercado. A não representação brasileira é um sintoma óbvio do nosso enfraquecimento nas políticas culturais.
Deixando estes sintomas (ademais notórios) de lado, o Santiago a Mil promoveu, com extrema eficácia, uma plataforma para inserção da cena latino-americana nos palcos internacionais. Vale ressaltar que delegações europeias e americanas — do norte — estiveram em peso, numa configuração fértil.
Processos abertos criaram expectativas importantes. Numa proposta na qual cada apresentação deveria ter trinta minutos, aberta apenas para os participantes do Platea 17, artistas do Peru, Chile e Argentina ganharam destaque: Manuela Infante, também na programação oficial com “Xuárez”, apresentou “Aparato Radical”, uma imersão no universo vegetal e na filosofia das plantas em neurobiologia vegetal — algo que merece destaque pelo ineditismo em tom palestrante; Mariana de Althaus, do Peru, apresentou uma interessante leitura em mise-en-scène minimalista com “Los Aviones que Cruzam el Cielo”; a escritora e poetisa brasileira Ana Cristina Cesar, ícone de uma geração, foi inspiração para os argentinos Nahuel Cano e Ezequiel Menalled, no intuito de aproximar outras gramáticas à cena, em “Una Tierra Salvaje”.
Quanto aos espetáculos, Platea 17 se misturou com a programação do próprio Santiago a Mil. Líbano, Alemanha, Bélgica e México (país homenageado na programação oficial do festival), também se apresentaram na plataforma para realizadores. Destaque para a companhia Vaca 35 Teatro en Grupo, com o potente “Lo Único que Necesita una Gran Actriz Es una Gran Obra y las Ganas de Triunfar”, baseado em “As Criadas”, de Jean Genet.
Wim Vandekeybus, com “Speak Low if You Speak Love…”, e Thomas Ostermeier, com “O Inimigo do Povo” e “O Casamento de Maria Brown”, exerceram o melhor da potência da cena contemporânea através da relação dialógica com o público, seja pelo encantamento, seja pela controvérsia em meio a tanto aparvalhamento no mundo.
Lola Arias, dramaturga e diretora argentina reconhecida mundo afora pelas suas incursões subjetivas aliadas a depoimentos pessoais, num teatro documental poético e intenso, apresentou “Campo Minado”, uma coprodução com o Lift Festival. A Guerra das Malvinas é o cenário a ser revisto pela encenadora, mais de trinta anos depois. Soldados argentinos e britânicos, que participaram deste enfrentamento brutal, apresentam uma panorâmica de sensações e testemunhos, aliados em uma ótima banda de rock — ex-soldados, novos performers.
Guillermo Calderón apresentou o imprescindível “Mateluna”, seu mais novo espetáculo — um desenvolvimento a partir do trabalho anterior, “Escuela”. Sua recente obra eleva o teatro documental e todo processo que o envolve, a partir da prisão de Jorge Mateluna, colaborador de “Escuela”, preso em 2013. Questões éticas e de resistência se revelam de forma definitiva a partir de um suposto assalto a banco envolvendo o “protagonista”. Vale lembrar que “Mateluna” poderá ser visto na Mostra Internacional de Teatro de São Paulo (MITsp).
Se o Santiago a Mil abriu o ano dos festivais com chave de ouro, Platea 17 solidificou elos fundamentais para o desenvolvimento latino-americano no mercado internacional. Através de políticas culturais consistentes, o festival chileno tornou-se exemplo contra qualquer apatia, por meio de uma política incisiva nas artes cênicas.
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Cesar Augusto é um dos diretores do TEMPO_FESTIVAL
[foto: “Lo Único que Necesita una Gran Actriz Es una Gran Obra y las Ganas de Triunfar”, por Paula Prieto]