DIALÉTICA ATIVADA na MITsp
Conflito, harmonia e justaposição
Por Jonas Klabin
A Mostra Internacional de Teatro (MITsp) apresentou uma seleção exemplar com um olhar bem definido e necessário, sem concessões. A curadoria agrupou diretores internacionais importantes, que precisam ser conhecidos no Brasil, apresentando trabalhos difíceis, radicais e contrastantes, singulares no que propõem e que instigam o pensamento. São espetáculos que, por mais diversos que sejam, focam em uma dialética viva. Ainda que em conflito, os elementos e recursos cênicos se justapõem para criar uma experiência inteiramente nova e harmônica, contraditoriamente harmônica. Engajados e atuais, os trabalhos, por meio de uma simultaneidade de artifícios e pensamentos, comentam a condição humana: a civilidade e a bestialidade, o real e o imaginário, a palavra e sua falta, o testemunho e a fábula, o discurso/idéia e a ação.
Nos três espetáculos aqui comentados – Gólgota Picnic, Ubu e a Comissão da Verdade e Cineastas – vemos que a dialética e a justaposição de diferentes mídias e conteúdos (quanto mais oposto ou contraditório, melhor) são procedimentos que contemplam o momento presente, em toda sua complexidade.
Gólgota Picnic
Rodrigo García
La Carníceria
O mais difícil dos três espetáculos, Gólgota Picnic intencionalmente aposta no confronto entre a ideia e a imagem|ação. Resulta daí uma desarmonia que deve ser decifrada pelo espectador, quando este deseja criar uma narrativa de algo que caminha para o lado oposto. O público é alimentado por paradigmas subvertidos (a química entre os discursos e a mise-en-scène), fato que gera sensações muitas vezes desconfortantes. Nesta dialética de imagens e ideias, silenciosamente se criam metáforas do discurso através da performance.
O título já aponta para uma imagem desarmoniosa, de oposição: um piquenique, uma atividade de lazer e prazer, no Monte Gólgota, um lugar, na tradição cristã, de sofrimento e sacrifício. O monte coberto de caveiras, representado por centenas de pães de hambúrguer enfileirados cobrindo o palco inteiro, traz associações de um culto ao consumo da nossa sociedade, sem ignorar a correlação do pão à carne de Cristo. Num canto ao fundo, um grupo de amigos sentados para um piquenique. Este é o cenário escolhido para uma série de discursos sobre arte, religião e a verdade no mundo de hoje. Tais discursos são cheios de excessos, transitoriedade e superficialidade, catalisados pelo bombardeamento da mídia.
Rodrigo García: Gólgota Picnic from herbst remixed on Vimeo.
Diversas imagens são criadas no palco: uma Torre de Babel feita de pão e minhocas, a crucificação de um ator, a carnificina orgiástica representada por banhos de tinta azul e vermelha em corpos nus, um moedor triturando carne vermelha, a regurgitação de pão mascado, tudo eventualmente transformando o palco em um aterro de lixo decadente. Tais imagens são com frequência acompanhadas de projeções no telão ao fundo, chamando atenção a um ou outro detalhe do palco. Monólogos também estão sempre presentes, produzindo dialéticas inconclusivas entre o visto e o dito.
Se for para dividir o espetáculo em duas partes, encontramos, ao final, a apresentação completa de As sete últimas palavras do nosso Salvador na cruz, de Joseph Haydn, interpretada ao piano por um ator nu, em uma luz suave, finalmente apresentando uma imagem linda e harmoniosa, o que até causa alívio ao olhar da plateia. Ouso dizer que o público aprecia ainda mais a beleza deste momento (mesmo que este seja inspirado num momento de intensa dor, agonia e sacrifício) por ter assistido a tudo o que veio antes. A primeira parte do espetáculo então se opõe a esta, havendo uma complementaridade entre elas. Elas coexistem neste mundo, mesmo que violentamente opostas.
No post a seguir, Jonas Klabin escreve sobre Ubu e a Comissão da Verdade e Cineastas.