Um homem jovem vestindo jeans e camiseta retira seus tênis e entra no palco cinza, onde começa uma coreografia que, da plateia, vemos apenas em parte sob uma iluminação fraca, noturna, lunar. Depois de alguns movimentos, um segundo homem, vestido de maneira similar, se junta à coreografia do primeiro, como se lá estivesse desde o primeiro passo. Outros dois entram da mesma forma. Mais um, outros três. Quando chegamos ao oitavo componente do bando, nossos olhos já se acostumaram à luz soturna, e dois bateristas já estão em seus lugares para começar o ritual de 70 minutos que envolverá performers e público a partir dali.
D’après une histoire vraie (em tradução livre, ‘A partir de uma história verdadeira’), mais recente criação de Christian Rizzo, é um espetáculo que parece fora do tempo justamente por sua capacidade de nos manter no presente. Originada a partir de uma fantasia mediterrânea, construída no desejo de convivência entre o coreógrafo e seus atores e minuciosa em todos os detalhes, a peça teve lotação esgotada em todos os lugares onde se apresentou, da estreia no Festival d’Avignon de 2013 às quatro apresentações dentro do festival Séquence Danse Paris, no centro cultural CENTQUATRE, no final de abril.
Na entrevista concedida em Avignon, Rizzo conta que o trabalho nasceu de uma reminiscência de 2004, quando, durante um espetáculo que assistia em Istambul, um grupo de homens executou uma dança folclórica e rapidamente desapareceu. Segundo o diretor, a lembrança manteve-se tão forte que o fez debruçar sobre suas origens mediterrâneas e, mais precisamente, sobre como construímos fantasias a respeito de nossas raízes. Embalado pelo sonho de uma noite turca, ele começaria a criação do seu próprio folclore tradicional.
< Diferentes origens, convívio em comum: os bailarinos formam uma espécie de legião, na qual todas as relações se dão pela dança. >
Ainda nesta entrevista, Rizzo diferencia este trabalho de seus anteriores — geralmente movido pela tristeza, ele confessa seu estado de cólera quando decidiu iniciar o projeto da “história verdadeira”. Neste novo território sensível, abandonou suas parcerias de longa duração e optou pela seleção de jovens bailarinos estrangeiros à França. O processo da criação do novo bando (como ele mesmo gosta de chamar) veio com o reconhecimento entre as partes e o desenvolvimento de um folclore coletivo, enriquecido pela bagagem de jovens de países como Turquia, Espanha, Portugal, Itália e Peru. A raiva inicial do artista, ocasionada em parte pela atual crise da política cultural francesa, reverberou e se dissipou nas estruturas vividas em grupo, no “estar junto” e nas experimentações que, em pequena escala, ecoaram as dores e os prazeres de fazer ou não parte de um conjunto, uma sociedade ou uma humanidade.
O público, sobre arquibancada provisória construída no vão do CENTQUATRE, começava o espetáculo ainda iluminado pela luz do dia que penetrava as clarabóias. Aos poucos, o crepúsculo do lado de fora se somava à imersão visual e musical da peça. O som de duas baterias estranhamente complementares se somava aos batimentos cardíacos dos espectadores, como tambores e corações faziam durante rituais ancestrais. O que víamos vinha impregnado de memórias da convivialidade humana, da capacidade convivial talvez mais clara nas referências mediterrâneas e sulamericanas do diretor e seus bailarinos que nas relações políticas intra- e internacionais.
Nesta reunião de homens destituídos de rótulos geopolíticos, a dança de traços folclóricos emergia incógnita para o mundo, mas decodificada por cada espectador. Ali, a apropriação do gesto convivial pela dança contemporânea também nos deixava questões profundas a respeito da maneira como reconhecemos nossa história e realidade, especialmente na estreita relação entre a manifestação humana e as instituições que a cerceiam. O fato do projeto ser, de alguma forma, eco da crescente insatisfação política que assola as nações ocidentais nos faz perguntar até onde somos dependentes de organismos burocráticos para existir enquanto seres de pequena escala, até onde os sistemas (governos, empresas, etc.) que criamos nos devoram.
Pensamentos interrompidos por um grito primitivo, que encerrou a peça sob a mesma luz fraca e lunar que a iniciou. Na plateia, a luz externa que incidia já era a da própria Lua. Sentados, começamos a bater palmas em êxtase, durante o som das quais os bailarinos reverenciaram, saindo de cena e voltando três vezes. Afinal, era claro, estávamos nós mesmos em um ritual.