Por Rodrigo França |
Recebo uma mensagem do meu amigo e diretor Fernando Philbert, através do WhatsApp: “Rodrigo, gostaria que você lesse o livro ‘Contos Negreiros’, do Marcelino Freire. Acredito que seja um ótimo texto para teatro.” Comprei o livro no mesmo dia, em menos de uma hora já havia devorado cada palavra. Fiquei mexido. Lembro-me que no último ponto final eu estava petrificado. Porém, com muito receio da acidez e da ironia de que o Marcelino Freire se apropria na sua escrita. Como levantar um espetáculo que fale da situação do negro e da negra à margem da sociedade, sem cair na mesmice? Sem cair na armadilha dos estereótipos? O texto é maravilhoso, mas uma coisa é o leitor não compreender um determinado conto e poder reler quantas vezes quiser. E no teatro, como seria?
Tenho muito respeito por qualquer discussão relacionada às minorias sociais. Creio que o teatro é uma plataforma política (no sentido “politikós” — dos cidadãos, em relação à troca de ideias). Mesmo que se faça exclusivamente para entretenimento, o teatro propicia algum tipo de reflexão e formação de opinião.
Entrei em contato com o Philbert falando que havia amado o livro, que tinha receio, mas que confiava nele e em sua inteligente direção. Audaciosamente pedimos autorização ao Marcelino, que comprou a ideia, de forma generosa, sem pestanejar. Acreditávamos que fôssemos passar pela editora, pelo agente… Que a negociação levaria alguns meses, mas o “sim” veio através de uma conversa por inbox, pelo Facebook. Em um papo delicioso sobre o amor ao teatro, sentido por Freire. Ele queria ser ator, mas a timidez não deixou.
Agora temos um ótimo texto e uma direção emprenhada em contar uma história brasileira. Philbert havia codirigido o espetáculo “O Topo da Montanha”, com Taís Araújo e o Lázaro Ramos. Tinha mergulhado na literatura negra internacional e nacional, somado com estudos técnicos sobre a situação racial no Brasil. Procuramos o produtor Sérgio Canizio para nos ajudar a concretizar o desejo. Uma leitura foi feita com oito atores e atrizes geniais. Escrevemos o projeto e entregamos ao Sesc, que, abraçado pelo gestor Paulo Mattos, criou a Ocupação Marcelino Freire. No mesmo ano, por coincidência, mais duas produções haviam enviado os seus projetos com o mesmo autor.
Por questões de produção, resolvemos montar o espetáculo com três atores: Li Borges, Milton Filho e eu. Tínhamos somente dois meses para levantar o espetáculo. Veio à novidade… O Philbert não me queria interpretando os contos. Sou cientista social e filósofo por formação acadêmica. Trabalhei durante doze anos sendo docente e pesquisador em segurança pública na Polícia Militar do Estado do Rio de Janeiro. Em cada conto eu deveria, como o Rodrigo-cientista, conduzir à plateia a realidade do negro e da negra no Brasil, através de reflexões e estatísticas. Fiquei eufórico, seria a oportunidade de “falar” tudo aquilo que sempre desejei discutir sobre o meu povo, mas só podia nos locais acadêmicos.
Volta o receio, eu não queria ser professoral e didático. Mas resolvi arriscar e confiar na batuta da direção. Era o espaço para mostrar o quanto ainda somos uma sociedade racista, que a cada vinte três minutos um jovem negro é assassinado no Brasil, contar sobre a violência obstétrica que atinge a mulher negra… Mas ainda cantar em yorubá, que é mais um ato corajoso do espetáculo, dirigido musicalmente pela Maíra Freitas. Uma musicalidade rica, que é segregada nos espaços das religiões de matriz africana, porque é marginalizada através de uma cultura etnocêntrica.
Em todas as sessões eu assisto às brilhantes interpretações da Li Borges e do Milton Filho. Vejo uma plateia atenta e emocionada com as informações que são invisibilizadas pela grande mídia e sentidas na pele por uma grande fatia da sociedade. Ao término, o público vem agradecer por falarmos, sem filtro, de uma mazela que é colocada debaixo do tapete.
O que se mais ouve é que “Contos Negreiros do Brasil” é um espetáculo necessário. De dentro eu afirmo que é necessário porque é honesto, respeitoso. “Contos Negreiros do Brasil” elucida um país que muitos fingem que não existe. Encená-lo se faz necessário, pois quebrar a ideologia da “democracia racial” nos fará refletir sobre os dois Brasis reais de que dispomos. Sem fazer um recorte racial, o país será um cenário visto de forma romantizada, sem a realidade das periferias, da maioria que não se enxerga na mídia travestida de “Xuxa”, das solidões dos becos, da penitenciária-favela-manicômio-população em situação de rua que são monocromáticos, do analfabetismo que rende muito dinheiro, da prostituição pela sobrevivência mínima, do noticiário policial, do genocídio da juventude negra, da gravidez precoce e a violência doméstica. Mas também de uma parte da população que, mesmo invisibilizada, produz cultura, obras literárias e tecnologias.
“Contos Negreiros do Brasil” fala sobre a nossa rica ancestralidade, fala sobre nós!
UBUNTU — Eu sou, porque nós somos!
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Rodrigo França é ator e está em cartaz em “Contos Negreiros do Brasil”, no Teatro Poeirinha, em Botafogo, Rio de Janeiro, até 26 de julho
[foto: Rodrigo França, Li Borges e Milton Filho. Crédito: Nil Caniné]