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As duas (contraditórias) pontas de um ‘Bicho’

As duas (contraditórias) pontas de um ‘Bicho’:
a recepção norte-americana a obra de Lygia Clark

(Victor Gorgulho, Nova York, 23/08/14)

  A crítica de artes plásticas Roberta Smith, do The New York Times, foi quem soube melhor precisar a recepção do público americano diante da exposição retrospectiva da brasileira Lygia Clark, em exibição até o dia 24 deste mês, no MoMA (o Museum of Modern Art), em Nova York: “incomum”. No texto de Roberta, a palavra vem carregada de uma conotação no mínimo ambígua. No entanto, o adjetivo talvez seja a melhor forma de ilustrar a forma com que boa parte dos norte-americanos reagiu a extensa e plausível exibição de mais de 300 trabalhos da carreira da mineira, entre as décadas de 50 e 80.

  Ao adentrar a exposição, o texto preparado pelo curador Luis Pérez-Oramas emplaca uma frase de efeito já em seu início: “Lygia Clark foi uma das artistas mais radicais e ousadas do século passado”. Eu, brasileiro, apaixonado pela história de nossa arte e admirador em especial da revolução que Clark e o amigo Hélio Oiticica provocaram no cenário nacional e internacional quando ativos em suas respectivas carreiras, não poderia concordar mais com as palavras de Pérez-Oramas. Lygia Clark é, sim, uma das artistas mais importantes do século passado, com relevância que (há tempos) ultrapassa o perímetro brasileiro, vide o peso que o nome da artista carrega, hoje, dentro do mundo das artes plásticas.

  Conforme termino de ler o texto de abertura, avisto um senhor americano que, ao sair pela porta da galeria que encerra o percurso da exposição, chama por uma das monitoras do museu, alguém responsável por realizar visitas guiadas pelas diversas exposições espalhadas pela instituição. “Essa frase não poderia estar ali”, ele abre sua conversa com a monitora, referindo-se às aspas citadas acima. Ela o encara, seu rosto com uma expressão de dúvida em relação ao  comentário do visitante, claramente carregado de um tom de indignação. “Não é verdade, não faz sentido dizer isto sobre ela. Algumas coisas aqui dentro nem obras de arte são”, compartilha, convicto, com a monitora e com diversos outros visitantes do museu que estão prestes a entrar na exibição.

  Ouço o comentário do senhor, escolho não me aproximar da dupla em questão para tentar bisbilhotar qual seria a resposta da monitora, e adentro a exposição. Não compreendo exatamente de que maneira, naquele momento, mas me percebo profundamente incomodado com as palavras daquele homem, tão decidido em diminuir a grandeza da obra de uma de minhas artistas favoritas. Ao longo do meu percurso pela mostra, vou achando pistas que justificariam a indignação do tal senhor, além de esbarrar por situações parecidas com o episódio que há pouco havia presenciado, desta vez em diferentes registros.

  A escolha dos curadores em apresentar os trabalhos de Lygia em ordem cronológica – iniciando com os primeiros experimentos geométricos dos anos 50, passando pelo período neoconcreto, abarcando diversos de seus ‘Bichos’ e terminando no trabalho performático e na arte-terapia que Lygia desenvolveu nos anos 80 – é, certamente, a melhor maneira de apresentar, de modo claro e coeso, o extenso corpo da obra da mineira para um público que, a priori, nunca teria visto, numa ampla exibição, os trabalhos dela. Além de exposições no Brasil, a obra de Lygia aparece, majoritariamente, em exposições coletivas ao redor do mundo, o que demonstra o esforço louvável do museu nova-iorquino ao conceber uma retrospectiva de tamanho impacto e visibilidade, toda dedicada apenas à obra de Clark.

  As obras escolhidas para capturar o olhar do espectador, logo na entrada da exposição, são dois quadros que, datados de 1954, apresentam a “descoberta da linha orgânica”, conceito que dá um pontapé inicial e acaba por nortear toda a pesquisa plástica de Lygia. Duas obras de difícil leitura (apesar de acompanhadas de breves e explicativos textos, que esclarecem o conceito explorado pela artista), as ‘linhas orgânicas’ de Clark foram, durante minhas duas visitas à exposição, em diferentes dias, praticamente esnobadas pela maior parte dos espectadores, que logo são captados pelas “Superfícies moduladas” desenvolvidas na década seguinte. O pulo, no tempo e na linha de raciocínio que guia a obra de Lygia, cometido por boa parte dos visitantes, sugere o que uma instituição como o MoMA (que, opino sem ressalvas, me parece ser uma das mais sérias e atuantes no mundo, hoje) costuma ser encarada por boa parte de seus visitantes: a maior parte dos ali presentes procura uma arte-com-ares-de-entretenimento, passando pelas centenas de obras (incluindo o notável acervo do museu) com olhos desavisados, poucas vezes curiosos, mais inclinados para registrar, em seus smartphones, uma obra ou outra que mais tarde possa vir a aparecer, quem sabe, em suas redes sociais.

  Ignorar a ‘linha orgânica’ de Lygia é, mal sabem os americanos (e estrangeiros diversos que percorrem os corredores do museu, diariamente), deixar de lado a ideia que funcionará como espinha dorsal de todo o resto da obra da artista: a linha que, de maneira peculiar, experimenta e flerta com as formas geométricas; a tela que vai se expandido e quebrando a moldura ao seu redor; as superfícies fragmentadas que compõem aquilo que a artista já não mais chamava de quadro; o triunfante desabrochar das formas, antes pictóricas, ganhando o espaço, na forma dos famosos ‘Bichos’. Em outras palavras: ignorar a linha de raciocínio (no caso de Clark, tão impressionante e concisa) de uma artista da complexidade de Lygia costuma resultar, me pareceu, na frustração experimentada, por exemplo, pelo senhor com quem esbarrei na entrada.

  Na quarta (e última sala) da mostra, a curadoria reúne os trabalhos performáticos e os experimentos terapêuticos da artista, já em seus últimos anos de trabalho. Em sua maior parte apresentadas através de registros fotográficos e fílmicos, as obras causam reações múltiplas dentre os visitantes. Em frente ao vídeo que documenta a performance “Baba antropofágica”, de 1973, um casal, ao meu lado, esboça uma expressão de nojo ao assistir a um dos trabalhos mais ousados de Lygia. Entro em estado de alerta, tentando captar as mais diversas reações que pipocam ao meu redor.

  “Ela era um pouco louca, né?” (“She was kind of crazy, right?”, nas palavras originais), solta a metade feminina do casal, ao desistir de acompanhar o depoimento de Lygia no vídeo “O mundo de Lygia Clark”, em que a artista discorre sobre a “nostalgia do corpo”, conceito que abarca as proposições de experiências sensoriais, que buscam retornar a um contato primitivo e real com o próprio corpo daquele que participa da experiência, que, na maior parte das vezes se vê conectado a um outro participante (por exemplo, com ambos compartilhando o ar que respiram em “O eu e o tu”, de 1967, ou sendo forçados a enxergar através do olhar do outro, em “Óculos”, de 1968). No vídeo, Lygia discorre sobre o conceito do “corpo automatizado” que desenvolveu nos anos 60, questionando a artificialidade que o então crescente sistema capitalista ia, silenciosamente, impondo ao corpo humano, tornando-o menos orgânico em seus mais diversos gestos e ações.

  A moça, que abandona o vídeo no meio de sua exibição, saca o seu telefone celular do bolso, apenas para dar uma provável usual checada em seus emails, aplicativos e demais funções que seu smartphone pode proporcionar. Me espanto com a atemporalidade das questões levantadas pela obra da brasileira, me vendo diante de um exemplo real e concreto do que o discurso da artista já abordava, há mais de 40 anos – quando celulares-inteligentes, por exemplo, ainda eram meros vislumbres idealizados de um futuro distante. Uma deficiência que acredito válida de se apontar, em relação a curadoria da mostra: apesar de apresentar um legítimo vigor em dimensionar o alcance e a importância do trabalho de Clark, os pequenos textos que apresentam cada uma das quatro salas falham ao não se preocuparem em contextualizar, tanto política quanto culturalmente, a realização da maior parte da obra da artista.

  É – para além das rupturas e dos arrojos formais e estéticos que boa parte dos trabalhos contém – no efervescente contexto político/social/cultural dos anos 60 e 70, onde o adjetivo “radical” mais torna-se pertinente para descrever o legado da artista. Sem situar o corpo de trabalho de Lygia nessas peculiares (e absolutamente relevantes) circunstâncias, algumas obras parecem vazias de significado ou impacto, aos olhos do público norte-americano. Uma das criações mais pessoais de Lygia, a instalação “A casa é o corpo”, de 1968, por exemplo, foi chamada, por Smith, do NY Times, de “parecida com um esboço de uma obra”. Desacompanhada das intensas palavras da artista sobre o ciclo da “penetração/ovulação/germinação/expulsão”, a obra parece uma precária instalação aos olhos de grande parte do público do MoMA, que estranha (com alguns até chegando a fazer piada, presencio) o uso de materiais como madeira e tecidos de baixa qualidade, sacos plásticos e balões de gás, em algumas das obras.

  Termino o percurso pela trajetória artística de Clark tomado por uma curiosa mistura entre o êxtase e a decepção. Êxtase por ver de perto algumas das maiores (e mais radicais, sim, bato o pé diante da opinião do senhor lá do início) obras da arte brasileira, em exposição caprichada, nos domínios de um prestigiado centro cultural fora da América Latina. E, decepcionado, por não poder interceptar cada um dos espectadores que sai da exibição fazendo “pouco caso” de uma artista da magnitude e complexidade de Lygia Clark, talvez por estarem acostumados com a extravagância que usualmente contamina diversas correntes da arte norte-americana atual (a retrospectiva do super-pop Jeff Koons é a exposição mais concorrida do verão de Nova York, o que nos diz algo), ou talvez por não estarem tão dispostos a mergulhar de maneira expressiva na obra da mineira, percorrendo as quatro galerias apenas em busca de um bom clique para suas redes sociais. Em tempo: foram proibidas fotos dentro da exposição, desanimando, ainda mais, este filão do público que caminha pelas salas do museu pouco inclinados a compreender a linha evolutiva de um trabalho extraordinário, ávidos, muito mais, por um bom clique para seus perfis no Instagram.

Categorias: Blog. Tags: Artes Plásticas, carrossel, Hélio Oiticica, Luis Pérez-Oramas, Lygia Clark, MoMA, Nova Iorque, Roberta Smith e The New York Times.