TRADUZIR

Aqui dentro, no teatro

TEMPO_Babaioff

Por Armando Babaioff |

Existe em mim, nesse momento, uma sensação potente que eu não sei se essas palavras vão dar conta. Mas eu quero escrever porque sinceramente acredito que escrever é também uma tentativa.

Está tudo tão esquisito no mundo lá fora que o único lugar que não me faz perder a esperança é aqui dentro, no teatro. O teatro é a minha fé, a minha proteção. Ele até me traz conforto, mas ele não me acalma; me inquieta. Uma inquietação minha, do meu convívio com o mundo, o de lá de fora. No ano em que eu traduzi “Tom na Fazenda”, 343 seres humanos foram assassinados pelo simples fato de serem quem eram. Matam-se mais homossexuais no Brasil do que nos 13 países do Oriente e da África, onde há pena de morte contra os LGBT.

O sexo e a procriação são da natureza, mas a sexualidade é produto da evolução da cultura humana, tão plural e diversa. É parte da nossa identidade, do que temos de mais valioso, porque nos aproxima e, nessa aproximação, temos a certeza de que não estamos sozinhos. E por que se morre por causa dela? Onde está a nossa parcela de responsabilidade nisso? Não me sai da cabeça o jovem Itaberli Lozano que, aos 17 anos, foi espancado e morto a facadas – três no pescoço – e depois teve seu corpo incinerado pela própria mãe e o padrasto, na cidade de Cravinhos, no interior de São Paulo. Uma mãe que não aceitava a homossexualidade de seu filho. Não consigo não pensar em Dandara dos Santos.

“Tom na Fazenda” me provoca o caos. É um espetáculo que me demole. Que pouco me reconstrói.  Como ator eu sentia que precisava falar sobre isso, sabia que teria que produzir, mas não me imaginava tradutor. Não tinha outra pessoa para dirigir essa peça senão Rodrigo Portella com sua poderosa escuta. Aliás todos que estão nesse projeto foram desejados, a nossa ficha técnica é a mesma desde o dia que bati os olhos no texto pela primeira vez. Já eram Kelzy Ecard, Gustavo Vaz e Camila Nhary que povoavam meu imaginário quando li as primeiras frases da peça. Além de serem ótimos atores, são os melhores amigos que qualquer um poderia ter nesta jornada e na vida.

Falamos de coisas que nos inquietavam a vida. Encenar Michel Marc Bouchard pela primeira vez no Brasil.  A trilha sonora acontecendo de forma espontânea nos ensaios, junto dos nossos improvisos. Os testes de cenário, a produção enlouquecendo, o figurino, a luz. A estreia. A reação das pessoas. A sensação de que estamos mostrando parte da complexidade e da crueldade do mundo no palco; ver e sentir no final de cada apresentação que as transformações que nos atingiram durante os ensaios chegaram na plateia. Às vezes, pensamos que somos seres humanos liberais e no momento seguinte percebemos que somos reprimidos, às vezes repressores. Quando um texto escrito em Montreal em 2011 se torna um discurso universal. Quando a fazenda não é apenas uma fazenda.

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Armando Babaioff é ator, idealizador e tradutor do espetáculo “Tom na Fazenda”, em cartaz no Oi Futuro Flamengo, até 14 de maio.

[foto: Renato Mangolin]

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