Na última semana de Abril de 2015, assisti no palco do Galpão Gamboa o espetáculo Adubo ou a sutil arte de escoar pelo Ralo, do Teatro Universitário Candango sob a direção do uruguaio Hugo Rodas. Pelo que entendi entreouvindo os burburinhos de outros companheiros de plateia, tratava-se de uma ocasião de celebração: uma década de estreia da peça, em Brasília, como espetáculo de conclusão do curso de Teatro da UnB de André Araújo, Juliano Cazarre, Pedro Martins e Rosanna Viegas.
O espetáculo pode ser compreendido como uma colagem de inúmeras figuras da morte. Costuma-se dizer que Adubo é um entrelaçamento de histórias. Porém, as questões existenciais suscitadas pela consciência da finitude, além de serem representadas por narrativas, o são por ideias, concepções de mundo e perspectivas diversas da morte. Além de fábulas sobre matados e morridos, o espetáculo põe-se diante da inescapável indagação – O que é a morte? – respondendo-a também por meio de conceitos e imagens.
Os conceitos não ofuscam, todavia, a teatralidade. Pelo contrário. As cenas são interpretadas pelos quatro atores através de uma densa carpintaria, onde cada artista, ao definir um contorno poético à própria performance, contribui para uma composição cênica em diálogo próximo com os demais. De fato, não se pode negar que o que chama atenção nesta obra é o modo como a companhia aborda um tema que, talvez, seja o mais recorrente em uma tradição ocidental e humanista. Tal maneira é marcada por gestos grotescos que são, por diversas vezes, mimetizados entre os atores, criando um coro atomizado pelo espaço em repetições que trazem ares de imbecilidade. Ou até mesmo a alternância de focos narrativos entre eles: enquanto o narrador conduz a história, os demais a encenam, ajudando a descrevê-la. Narração e descrição são, desse modo, funções narrativas coringas, que oscilam entre os atores.
Sob esta lógica de composição cênica encontram-se também outros dois recursos: o imenso quadro negro ao fundo; e os elementos cenográficos, em especial a mesa, os caixotes, as velas e garrafas que, em conjunto, estabelecem uma atmosfera boêmia à cena. Que é reforçada precisamente no começo do espetáculo, onde os quatro atores maltrapilhos compartilham bebidas e pílulas, sugerindo explicitamente uma conduta ébria em suas ações. Que tudo se passe com os quatro personagens doidões impõe uma condição ao tratamento da morte: só é possível tentar representá-la enebriado. Uma atmosfera de taberna é instituída, portanto, como se Macário, o romântico personagem de Álvares de Azevedo, rondasse por ali.
O quadro, por sua vez, revela-se como poderosa ferramenta descritiva: ora se torna o retrato de uma longa avenida sob perspectiva, ao rés do chão, de um rato morto próximo a um bueiro; ora serve como anteparo para o registro escrito ilegível de uma parte da história. Trata-se de um palimpsesto de giz que opera na mesma dinâmica da cena. O quadro negro, além de ecoar o tableau vivant, é também a metáfora visual perfeita do ciclo “das cinzas viemos, para lá retornamos”. O pó de giz, o pó das cinzas e das ervas dos cigarros, as ceras das velas, as garrafas, os pontos de crochê das roupas, os rasgos nas roupas: um acúmulo de elementos discretos, unidades em conjunto: comunidades.
Comunidades nietzschianas, como se adubo fosse o nascimento da seguinte tragédia: uma colagem de passagens e figuras da morte que, ao tentarem dar conta de toda a sua complexidade, não fazem outra a não ser, como o tubarão de Damien Hirst, constatar a impossibilidade da morte física na cabeça de um ser humano vivente.
Que o espetáculo desafie o tempo e comemore dez anos não apenas configura uma experiência extensiva da morte como, sobretudo, simboliza a temporada teatral. Que seja eterno enquanto dure (no mínimo, mais dez anos).