Por Ana Kfouri |
Comecei a dar aula no curso de artes cênicas da PUC-Rio no segundo semestre de 2015. O LAC – Laboratório de Artes Cênicas – é um espaço que acolhe, convida, chama para criar, inventar, pesquisar. Conclusão: me senti em casa. Detalhe: uma turma ávida para estudar, realizar, pensar, fazer acontecer, enfim, meter a mão na massa. Ali começava a pulsar algo fundamental das cênicas, um grupo de pessoas querendo pensar e fazer junto.
Minha disciplina é Interpretação (Projeto Atuação) e o curso é de graduação. Para pensar, então, a atuação nos dias de hoje, comecei articulando conceitos e práticas de grandes pensadores do teatro do séc. XX, em especial Antoine, Stanislavski, Meyerhold, Artaud, Grotowski, Brecht, Beckett e Kantor. A partir daí, meu intuito era adentrar os estudos práticos tendo como base a linguagem como potência, entendendo a palavra e o corpo como um campo de forças. Enfim, começar o meu trabalho. Para tal, era preciso alinhar reflexão e prática em torno do tema e compreender tanto a palavra quanto o corpo como campos de forças em tensão e em relação. Desviá-los de um entendimento da palavra que visa a uma mensagem e do corpo trabalhado como um instrumento de expressão. Adentramos, portanto, o campo da sensação, no qual se lida com níveis de tensão, com espaçamentos, texturas, sutilezas, forças, delicadezas, tato. Conduzi e orientei meus alunos a trabalhar a palavra conectados a um campo intensivo, no qual prevalece a intensidade em detrimento da intenção, o acaso no lugar de encadeamentos causais e evolutivos, o ritmo, a oralidade, a sonoridade e os significantes em vez de um fechamento de sentidos.
Nelson na veia
Comecei a trabalhar vários textos de Nelson Rodrigues. O meu interesse em experimentar os textos de Nelson com eles foi devido à condução não psicológica da dramaturgia rodriguiana, e principalmente a intensidade e a urgência daqueles personagens, o sentido trágico deles. Como é para o jovem ator dar conta disso? Os personagens de Nelson são imbuídos de uma tragicidade, um impulso para o sofrimento, para a dor, para a fatalidade, e mergulham nisso ao mesmo tempo em que afloram em toda sua artisticidade, que é a própria fala, o texto rodriguiano, a sensibilidade artística por excelência. Enfim, apostei em Nelson Rodrigues para dar início ao percurso que desejava construir com eles, o do fazer/pensar artístico no campo intensivo e não intencional.
Os alunos começaram a escolher textos, personagens, cenas, a partir de estudos, leituras e práticas, de acordo com suas demandas e chamamentos para a cena, afinados com o que desejavam falar e experimentar artisticamente. E assim começou a se esboçar o roteiro dramatúrgico que resultou na montagem “Obsessões”. Conto um pouco do processo deste exercício cênico para falar do meu trabalho com os alunos, que tem como base potencializá-los individualmente e em grupo. E, principalmente, estimulá-los a produzir pensamento próprio, crítico e inventivo, a partir dos estudos, das práticas, da convivência, do respeito e do desfrute das diferenças e singularidades. Entrecruzar cada vez mais os modos do pensar e os modos do fazer. Reflexão e prática, fazer/pensar, pensar/fazer. Atuar é dar a ver, e não apresentar algo já dado, e não ter conteúdo para passar ou demonstrar. Para o artista de teatro, acredito que as coisas dadas (no teatro ocidental praticamente a herança textocentrista, o pensamento hierarquizante, a estrutura dicotômica, um eu/sujeito interiorizado, o texto entendido como mensagem, com um sentido último) precisam ser deslocadas do terreno que ele vai criar. E este é um grande desafio para o ator. Mas é, antes de tudo, uma atitude, um modo de pensar e, portanto, um modo de fazer, a maneira como ele vai se inserir no mundo.
“Obsessões” foi um sucesso, fizemos um processo aberto ao público, depois fizemos apresentações de encerramento do semestre. E no semestre seguinte participamos do BOSQUE PUC CENA EXPERIMENTAL. Então…
O semestre seguinte…
Na PUC, pelo menos na maneira como funciona o Curso de Artes Cênicas, um semestre o professor dá uma disciplina obrigatória (a minha é interpretação: Projeto Atuação), e no outro pode dar tópico especial (ou mais que um). Eu, envolvida com estes alunos, propus o tópico “A Palavra como campo de forças”, para iniciá-los no universo de Hilda Hilst. Vale notar que entrei na PUC sem pensar em montar nada, absolutamente nada, mas acabei montando “Obsessões”… Acontece que, neste novo semestre, eu já estava repleta de más intenções, rs. Primeiro porque minha pesquisa relaciona palavra/corpo, palavra/espaço, corpo/espaço. Segundo porque o campus da PUC é maravilhosamente cênico, tudo praticamente chama para a cena, recantos, espaços, becos… E terceiro porque eu era louca pela Vila dos Diretórios, com aquela rua enorme e várias casinhas dos estudantes. E esta vila me chamava: venha fazer Hilda aqui.
“Boca de Miséria” foi a segunda montagem, com a maioria dos alunos de “Obsessões” presentes e também novatos, coitados… pegando logo de cara Hilda Hilst, sem terem passado pela experiência rodriguiana. Foi uma longa empreitada, porque no tópico especial temos somente 2h de aula 2 vezes por semana. Lógico que passamos muitas horas extras e fins de semanas ensaiando. O processo dramatúrgico foi parecido, no sentido de muitas leituras e escolhas de textos, mas bem diferente para os alunos. Nelson traz personagens em suas urgências, mas de toda forma retirados das peças teatrais. Com Hilda os alunos estavam lidando somente com o mundo das palavras, e sem personagens. Eles estavam frente-a-frente com o pensamento estonteante de Hilda, pensamento-corpo, pensamento-ação, pensamento-sopro, pensamento-chão. Uns se afinaram logo, para outros foi uma experiência mais difícil e lenta, e outros ainda sofriam (os novatos) com a falta de entendimento de uma fala não conectada ao campo psicológico. Mas aos poucos, as forças cognitivas, intuitivas e afetivas foram agindo e desta forma o roteiro foi sendo construído.
Tivemos a oportunidade, com “Boca de Miséria”, de agregar e entrecruzar mais profissionais, alunos e artistas. Assim entraram na equipe de criação Daniel Castanheira com sua turma do Projeto Som, o professor de voz Celio Rentroya e o artista Lucas Wenglinski, que criou a música inicial com trechos do texto “Kadosh” especialmente para nossa montagem. Eu era louca pra este texto entrar no roteiro, mas nenhum ator se interessou, por mais que eu os estimulasse. Resolvi mandar o trecho para o Lucas musicar porque intui que ele amaria encarar este desafio. Não deu outra, graças! Ele compôs uma música lindíssima, forte, boa de cantar (embora difícil, deu muito trabalho, rs) numa mistura dionisíaca carnavalesca ZéCelsoHilstiana. Os alunos adoraram, olharam para aquele texto de maneira diferente, experimentando com a música o humor, o escracho e a criticidade de Hilda. (O trecho da música: “… taí, é isso. Pertencer, caber, é tudo que pertence, tudo que cabe, tu Dorotéia não pertences, então, e eu pertenço e cabo, olha que cabo muito bem em quem me pertence, ora, pertencer caber, viste os tomates, pois não caberam? e cabe-se onde se quiser ora se se cabe, digo-te eu que não há coisa onde não se caba, lembras-te do Bertoldo? pois então menina, não cabeu ele no caixão? e de minuto em minuto inchava, verdade que tudo cresceu de um jeito que nunca vi, mas no fim da tarde não cabeu? Então, e tem mais: cabendo não há problema, o filho que cabe na barriga, o ovo que cabe na galinha…”). Eu também aprendi muito com esta cena musicada-debochada-carnavalesca que inaugura nossa montagem. Aprendi que os alunos podiam desafinar, todos os parceiros me convenceram disto (Daniel, Lucas, Célio), mesmo que eu tentasse de todas as maneiras que eles tivessem ouvido, que eles se ouvissem, que eles se afinassem…
Na rua da vila pulsa o dionisíaco de Hilda. O final da montagem é perpassado por sua veia política, sarcástica, crítica. E as casinhas caem como uma luva para encenar Hilda, porque tensionam o linguajar árido e contundente da escritora com o estar muito próximo do público. Os espaços-casinha são pista falsa pelo fato aparente de poder agregar as pessoas no ambiente. Mas eles produzem um espaço desconcertante, pois níveis de tensão vão sendo produzidos. Campos semânticos, críticos, poéticos, políticos, vão se abrindo e atritando escárnio, espiritualidade, obscenidade, perplexidade, poesia, dor, vazio. A proximidade provocando estranheza, desconforto. Então, muito mais que agregar, aconchegar, as casinhas produzem atrito. Um lugar novo é produzido ali, pelos atores e espectadores inseridos no ato presente da experiência cênica, ou melhor, lugares – concretos e imaginários – como o do pasmo, o do riso, o do desconforto, o do estranhamento, o da criticidade, o da suspensão, o da solidão.
“Boca de Miséria” teve apresentações lotadas e também participou do BOSQUE PUC CENA EXPERIMENTAL no semestre seguinte.
Eu não vou montar nada
No terceiro semestre de minha experiência na PUC de novo eu daria o Projeto Atuação. Pensei: eu não vou montar nada. Não queria de jeito nenhum que minha disciplina tivesse uma montagem como condição. E propus para a turma nova que se formava ali, com dois alunos somente que eu conhecia, que tinham feito o tópico Hilda (os novatos mencionados acima), uma exercício de leitura. Comecei a intercalar aulas teóricas com dinâmicas de leituras de textos. Considero a leitura em voz alta um exercício fundamental para o ator. Ela estimula o trabalho da fala inaugurando os sentidos, e não vice-versa. A necessidade de entender o texto para falar é uma armadilha para os atores. Lógico que falo aqui de autores que cavam na linguagem, que fazem eclodir da linguagem conteúdos semânticos, poéticos etc sem o intuito de “representar o mundo”. Enfim, apresentei vários textos de variados autores: Valère Novarina, Antonin Artaud, Hanoch Levin, Martin Crimp, Marcio Abreu, Peter Handke, Koltès, João Ricardo Milliet, entre outros. A proposta era aguçar o ato da fala e o da escuta. O querer falar, o querer ser ouvido, o se ouvir. Os alunos foram experimentando no corpo-respiração-boca-voz os textos. Alguns começaram a entrecruzá-los, outros pesquisaram e trouxeram diferentes textos, estimulados sempre pela proposta de falar aquilo que precisariam muito dizer naquele momento. Juntamente com este buscar/experimentar dramatúrgico, pedi a eles para pensarem o espaço também. Se o ato da fala é também o ato da escuta, eles precisariam pensar em onde estar, em como estar com o outro, se próximo, se distante, se em espaço aberto ou fechado, enfim, pensar o “exercício leitura”, e não somente ler.
Marcamos o dia da apresentação deste exercício de leitura cênica. Conclusão? Gostei do que vi: empenho, comprometimento, dedicação, desejo de falar/fazer. Mas mais do que isto, percebi que deveria aprofundar aquele exercício com eles. Não poderia passar para outra proposta. Eles construíram uma dramaturgia tão potente, ficou tão claro a exposição deles, de querer falar aquilo que estavam falando, que precisávamos continuar. Ou seja, precisaríamos fazer o exercício se tornar cênico, não mais uma leitura cênica. Isto significava potencializar a fala (com muitos exercícios de respiração e de corpo-voz), intensificar também a relação corpo-espaço, a fala no espaço, a fala espacializando, a fala agindo, o espaço agindo, o corpo agindo. Era preciso interligar estes atos de fala no campus da PUC. Pois os alunos adentraram vários espaços, corredores, bosques, becos. O corredor apertado, por exemplo, que fica ao lado do LAC, foi usado para o texto “Maré”, de Marcio Abreu. Um texto que, quando li, pensei imediatamente em trabalhar com meus alunos. São 4 vozes sonoras: a da avó, a das crianças, a do homem e a da mulher. Quatro vozes-sopro, intenso fluxo sonoro dando a ver uma chacina. O espaço-corredor intensifica, redimensiona, agonia a todos nós, atores e espectadores, com este real, cênico e cruel, da cidade maravilha.
E agora?
Quando comecei a pensar no que proporia como tópico especial neste primeiro semestre de 2017, me dei conta que tinha três montagens diferentes, com um grupo de alunos afinados, muitos participando de duas montagens, e ficou muito claro a proposta que faria: o Projeto Repertório. Colocar os alunos em cartaz durante dois meses com as três montagens. Eu falo sempre para eles em consciência de potência, estimulo-os continuamente a acessarem as forças do corpo, a aprofundar a relação deles com o mundo das palavras, o querer falar, o escutar, e o como fazer isto. O repertório abriria uma oportunidade incrível para eles para vivenciarem uma pesquisa de linguagem continuada na graduação. Além de estimular a difícil e fundamental experiência da convivência, do conviver na intensidade, na intimidade, na diferença. O Repertório estimula o senso de coletividade, tão latente nas artes cênicas, e fundamental para o exercício diário e democrático da cidadania hoje. São duas aulas por semana, de 2h (loucura), lógico que de novo ficamos alguns fins de semana totalmente imersos em ensaios, e temporada de sexta a domingo, durante dois meses. Alguns substituíram atores que saíram (poucos), os elencos se mesclaram nas funções de produção, operação de som e luz, montagem e ambientação. E a equipe de direção de produção ficou à frente de todos os trâmites com a instituição, e dialoga com a assessoria de imprensa, produz releases, fotos, vídeos, trabalha apoios, entre mil outros afazeres, com a colaboração do grupo.
A palavra (força corpórea) entendida como potência interliga as montagens, mas cada peça tem suas especificidades e demandas cênicas. Nelson Rodrigues é mais “teatro”, no sentido da escolha de trabalhar um grande dramaturgo brasileiro, autor que inaugura o teatro moderno no Brasil (algumas vertentes acadêmicas discordam). O sentido trágico em Nelson Rodrigues é o norte do roteiro dramatúrgico de “Obsessões” e faz eclodir milhares de facetas hediondas do ser humano. Penso que o sentido trágico em Nelson, a intensidade com que os personagens irrompem em cena tem a ver também com o sentimento de fracasso do ser humano que Nelson traz em sua obra. Ele diz em uma de suas crônicas (entre várias que escreveu para/sobre o irmão Roberto), que o “homem devia estar de quatro, no meio do bosque, urrando”. A dimensão crítica da obra de Nelson tem a ver com esse homem de quatro, tem a ver com a hediondez do ser humano, a falsidade da vida social. A obra dele é um grito, um campo de forças em tensão, de forças incontroláveis, impulsos irracionais, vingança, adultério, incesto, humilhação. Ali convivem desde a degradação da família, o apodrecimento da família como potência desse fracasso da natureza humana (que hoje em dia não provoca tanta polêmica como na época dele, porque hoje a família já foi desconstruída, existem outras e novas maneiras de se construir e se constituir uma família), até questões potencialmente atuais, como o preconceito racial, a opressão da mulher, o machismo ainda vigente na sociedade, a opressão da sexualidade de um modo geral, a “superioridade” de alguns sobre outros, a “inferioridade” de quem vive uma condição social precária, enfim, toda a crueldade e estupidez de um pensamento fascista e colonialista que constitui a nossa história. Nelson Rodrigues diz: “A ficção, para ser purificadora, precisa ser atroz. O personagem é vil, para que não o sejamos. Ele realiza a miséria inconfessa de cada um de nós… Para salvar a plateia, é preciso encher o palco de assassinos, de adúlteros, de insanos, em suma, de uma rajada de monstros.”
E “Anánkê” (em grego: Ανάγκη, a partir do substantivo ἀνάγκη, “força”, “restrição”, “necessidade”, na mitologia grega era uma antiga deusa da inevitabilidade) traz atos de fala destes atores enfrentadores de várias questões dos nossos tempos, como o poder, a opressão, a violência, o dinheiro, a luta dos negros, das mulheres, da liberdade sexual etc. Eles precisam falar, eles precisam ser ouvidos.
Tivemos que repensar toda a cena final porque alguns espaços escolhidos não poderiam ser novamente utilizados. E acabou que isto potencializou ainda mais a montagem. Realmente o teatro nos ensina muito, nos faz pensar, repensar, criar, inventar e muito mais. Olhei o entorno do LAC, que já fazia parte do início anteriormente, e propus fazermos tudo ali. As cenas iniciais, a dos bosques, o corredor (que já era ali) e a cena final na ribanceira! Sim, na ribanceira! Tivemos a sorte de ser retirada uma tenda enorme, lacrada, um “troço” que ficava bem em frente ao LAC. Esta tenda impedia a visão da ribanceira. Ao ser retirada, este espaço montanhoso magnífico se abriu. E nos chamava. E nós fomos, lógico. E descobrimos muitas maneiras de encenar ali. Alegria.
“Anánkê” traz muito esta tensão/relação palavra-espaço.
“Um estouro um zunido no ouvido o medo na alma o meu filho querido um silêncio profundo um vermelho um quente um molhado o meu filho molhado ô meu deus olha a gente o meu filho o meu menino meu deus meu menino molhado vermelho eu olho pra ele meu filho assustado orgulho da casa ele cuida da gente não vai embora meu filho meu deus acode meu filho não deixa a gente menino o que vai ser de mim um aperto no peito uma falta de ar meu jesus misericordioso não me deixa sozinha me leva daqui me leva junto meu filho o que vai ser de mim o meu filho nos braços um vermelho um quente um molhado eu tô velha meu deus quem é que vai cuidar de mim quem é que vai cuidar de mim quem é que vai cuidar de mim um pedaço de carne a maré tá subindo” (Trecho de “Maré“, de Marcio Abreu, encenado em um corredor muito estreito).
O Projeto Repertório está em pleno desenvolvimento, afirmando uma atuação consistente, ética e diferenciada no mundo hoje. Tenho muito orgulho destes jovens estudantes universitários de Artes Cênicas da PUC-Rio. Uma turma calorosa, investigativa, potente, colorida, repleta da diversidade maravilhosa do nosso país, com variados sotaques, cabelos, peles, corpos, vindos de vários pontos da cidade, da periferia, da Tijuca, da Barra, de São Gonçalo, da vida, enfim! Eles fazem acontecer a arte, dando a ver a palavra como campo de forças, com a potência de sua juventude e de seus desejos, e a determinação de seus corpos livres e vazados.
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Ana Kfouri é diretora teatral e atriz
[foto: cena de “Boca de Miséria”. Crédito: Gonzalo Gaudenzi]