TRADUZIR

A IDEOLOGIA CONFUSA DO NATURALISMO E O CLICHÊ DO SILÊNCIO

Conforme a fala de um dos integrantes do CPT, antes da apresentação do (“exercício” ou “espetáculo”?) Coletânea 2, o Prêt-à-porter teria surgido há mais de 10 anos a fim de ser uma espécie de laboratório de estudo para atores, e nasceu, fundamentalmente, de uma percepção de Antunes filho, diretor do CPT e supervisor do Prêt-à-porter, de que o essencial ao teatro seria o ator, e não a parafernália cênica (efeitos especiais, cuidado com a cena, luz, figurino, entre outras parafernálias, que, concordamos, não estão nessa coletânea). Tal integrante falou igualmente do espetáculo Drácula, com Luís Melo, como um exemplo nuclear dessa crise de Antunes. Daí eu me perguntei se a crise do diretor não seria do gênero ator, no masculino, e não devida a má qualidade de atores contra a parafernália técnica, já que acompanhei o Prêt-à-porter desde o segundo espetáculo e lembro-me de não ter visto um ator (homem) a altura de Luís Melo, apesar de toda a vibração excessiva que tal intérprete traz, às vezes, em suas atuações. Lembro-me de Sabrina Greve, Silvia Lourenço, Juliana Galdino e Susan Damasceno. Sempre mulheres. Sempre atrizes.

Surgiu certamente um ator, Emerson Danesi, que nada mais é do que um anti- Luís Melo, o que não quer dizer um anti-ator, mas sim uma figura que ao investigar um naturalismo Zen descobre o clichê do natural, o artifício do natural, ao contrário do excesso expressionista de um Luís Melo.  Toda volúpia deste torna-se um silêncio artificial no outro, uma fala pastosa, como se todos os seus personagens – um executivo num quarto com uma prostituta, um amigo de faculdade apaixonado pelo amigo heterossexual (ou pseudo-hétero?), um quase travesti aos modos de uma Madame Butterfly – fossem subsumidos num religioso zen, como se ser natural significasse uma firmeza doce, suave, uma contenção silenciosa, o clichê de uma emoção contida. Há uma pesquisa gestual da parte desse ator, uma partitura estudada, mas seu texto falado sempre parece trazer um elã místico, sugerindo uma profundidade ingênua (própria de uma dramaturgia atoral que dispõe de pouca vivência), uma vez que não é submetida a um examinar autocrítico da fala da personagem. Por isso, a profundidade torna-se piegas: o passado do amor mal resolvido, uma falta de sensação corpórea cheia de aura psicanalítica. Todas as personagens são uma mesma, na qual a linguagem falada de uma personagem (a travesti, o amigo, o cliente) é sempre similar.

Não estou aqui me referindo a pesquisa de voz como estereótipo, mas como observação da realidade, em que a realidade irrompe por pudor de referências literárias e de citações de alta cultura (como slogans), que nada mais são do que a busca de auto-afirmação pelo referente erudito. Basta comparar a prostituta de Susan Damasceno (vinda da Augusta) e o travesti de Emerson (vindo de Madame Butterfly). Tal referencialidade é um excesso de falta de autocrítica, uma erudição kitsch. Nessa primeira cena, Estrela da manhã, um cirurgião mostra um painel cheio de quadros de pintores conhecidos (Gauguin, Modigliani, Matisse, entre outros) num papel impresso, cuja temática são os seios femininos. Daí realmente pensa-se que não há nenhuma inteligência plástica, pois os quadros nesses papéis escaneados são dispostos de uma maneira tão constrangedora que mais parece um momento de teatro-escola para ensinar quem são tais pintores, apenas com o objetivo de conhecer, memorizar, citar, mas não de entender a inteligência plástica que cada um deles gerou. O ator pleno e inteiro do CPT não necessita dessa inteligência plástica. É o que nos parece vendo as três cenas. Essa inteligência própria do homem de estar imerso na linguagem, no discurso e na história, não os preocupa, uma vez que é compreendida como “parafernália” e contraposta a um ator essencial.

Tal cena segue esboçando uma tentativa de estranhamento pelo fato do médico ser um híbrido entre evangélico e judeu, pelo menos é o que parece pelo pouco desenvolvimento da situação religiosa encenada. O tema realmente poderia ter tido outro tratamento caso não houvesse tantas interdições e verdades absolutas congelando essa cena, por meio de frases de gosto erudito, cheias de um anacronismo acrítico, com vontade de chegar a um naturalismo Zen.  O “eu te amo” do médico interpretado pelo ator Kaio Pezzutti, o momento em que ele profere palavras evangélicas e rabínicas, e o qual explica as pinturas coladas no fundo negro – que funciona como coxia em todas as cenas – não constroem uma unidade de pesquisa para a personagem e tampouco é trabalhado conscientemente como portadora de uma contradição. O estranhamento que a cena provoca é feito por um agrupamento de clichês pouco matizados, e que não demonstram vivência e experiência da linguagem dessas personagens. Há uma parte em que Yuriê (a travesti) agradece ao médico por ele estar sendo gentil com ela, pois, segundo a paciente, as outras meninas que passam por essa cirurgia são obrigadas a pagar três vezes mais o valor da operação e ganham de seus médicos uma cicatriz, como marca punitiva. Mas a beleza do fato narrado é enunciada por Emerson Danesi como um canto artificial: “obrigado por sua integridade!” A busca do ator de não fazer um travesti estereotipado o faz construir uma personagem sem carnalidade, pairando num nada esvaziado e a-histórico.  Tampouco tal personagem é épica e distanciada. É na verdade retórica, demonstra uma vontade lírica do ator de construção de algo muito mal perspectivado, isto é, por não querer um enfrentamento com o estereótipo da rua – perferindo uma aura trágica de Madame Butterfly -, Emerson cai no estereótipo do artístico, no da densidade, no do silêncio. Também não vemos aí a quebra proposital de uma lógica perspectivada (alterando o centrífugo e o centrípeto), mas sim uma tentativa de um modelo seguro mal realizado. Não por falta de possibilidade técnica do ator, mas por obediência a um discurso confuso sobre o naturalismo, mesclado a uma falácia mística e religiosa da proposta do Prêt-à-porter. A idealização de um silêncio e de um esvaziamento, sem a percepção da potência textual do silêncio, cai no clichê do silêncio.

Na segunda cena, Pontos sem retorno, Emerson Danesi e Marcelo Szpektor interpretam dois amigos numa festa nostálgica da turma de 1993. E nela percebe-se que há algo mal resolvido entre eles, um afeto que ultrapassa a ideia de uma amizade sem interesses de outra ordem. Aqui a dramaturgia parece saída de um seriado americano, ou de uma novela brasileira (espero que não se perceba nenhuma ironia nessa observação), pois notícias dramáticas, como o câncer da esposa – com direito a metáfora de um gesto de mãos num livro de Modigliani da Taschen; gesto feito em cima da capa do livro, mais precisamente nos seios do quadro Mulher Nua – pontuam o inaudito de uma possível relação amorosa que pode ter havido entre eles, e que aqui é sugerida, não revelada inteiramente, mostrando bem mais sutileza dramatúrgica quando comparamos essa cena com a primeira. Emerson aqui, possivelmente por estar mais próximo da personagem, consegue um desempenho mais preciso, compondo um amigo solitário que nutre algum afeto pelo colega, interpretado por Szpektor. A proximidade não se dá apenas por uma facilidade na composição, mas devido à ideologia do silêncio, presente sempre como um motor interpretativo de Danesi, motivar, nessa cena, a trama das personagens. O que nos faz perceber o quanto o próprio silêncio fala, significa; ele é discurso, visto que aqui ele tem um sentido operatório nessa dramaturgia, que, apesar de tradicional, revela maior manejo consciente nas escolhas.  E deve-se pensar igualmente o quanto tal falácia do esvaziamento (do fim da parafernália), sem contextualização, sem um entendimento crítico provoca um “maneirismo do silêncio”, uma retórica mística, sem consubstancilização crítica, fingindo uma densidade inexistente, uma busca por um nirvana atoral cheio de equívocos.

A terceira cena, Poente do Sol nascente, continua com a falta de inteligência plástica das outras duas, sem a dita parafernália própria ao Drácula. Mas com uma atriz que brilha, e que, no seu trabalho, demonstra uma consciência de composição ao construir uma prostituta da Augusta. No texto dito por Susan Damasceno, notamos jogos de palavras, uma busca por indicar que não é a realidade ordinária a que se vê ali, mas que há em sua construção uma intervenção artística (a criação de uma personagem: Teresinha). Porém, como opta por um trabalho centrípeto e intimista – assim como parece ser a busca do Prêt-à-porter –, a atriz sabe que a inteligência do seu texto deve ficar submetida a sua personagem, sem que essa exiba falas de teor literário, mas que o valor nasça sem que a personagem mostre consciência. Por isso, tudo que é dito – como no momento em que Teresinha fala que adora morar em lugares pequenos, pois nunca “chega lá, sempre está aqui”, ou quando diz que prefere se apegar a Deus porque “pelo menos, ele existe” – nunca é inverossímil dentro da proposta. O conteúdo metafísico de seu texto pode ser dito pela personagem que fala tudo aquilo sem consciência e sem grandiloquências. Sua personagem é uma Macabéa, e a atriz a constrói dentro desse exercício perspectivo ficcional de construção de personagem. Seu naturalismo não é Zen e nem dotado de uma pseudo-densidade – e posso estender essa observação a outros desempenhos da atriz que pude assistir no momento em que essa cena aconteceu no quinto Prêt-à-porter, no qual a atriz fazia duas cenas e estava em cartaz com Medeia 2, fazendo um belíssimo trabalho como corifeu. O que impressiona em Susan é o fato de ela não submeter a sua fala a um lugar comum de pesquisa vocal do CPT, uma dicção clara e artificial. Ela interpretava um corifeu extremamente grave e austero, aos moldes de pesquisa cênico-vocal de Antunes Filho, e, em seguida, surgia com essa prostituta. É interessante notar como a atriz se mantém resistente a ser cobaia de um diretor, diga-se de passagem, de um grande diretor, pois entende algo que Antunes pode lhe dar, assim como o Prêt-à-porter pode lhe oferecer, mas sabe que existe algo que depende dela, e como artista deve oferecer ao Prêt-a-porter.

Tudo o que se percebe nessa Coletânea 2 é o engessamento do discurso do naturalismo, de um discurso confuso, a divulgação de uma técnica de ator por um diretor de teatro. E o brilho de uma atriz irreverente no meio desses clichês de silêncios.

Categorias: Blog. Tags: 2° TEMPO_2010, Antunes Filho, Prêt-À-Porter e TEMPO.