Uma praga leva uma cidade às ruínas. Por solicitação do Rei Édipo, o vice-rei, Creonte, convoca o vidente Tirésias para saber como livrar-se da peste. Mas todos os sinais apontam para Édipo: ele matou o rei anterior, Laio, o que teria provocado a punição dos deuses. Furioso, o Monarca suspeita de uma conspiração forjada por Creonte e Tirésias, até que evidências inequívocas provam que ele mesmo é filho de Laio, tendo matado seu próprio pai e desposado sua mãe, Jocasta. Ao descobrir a verdade, Jocasta enforca-se no palácio. Édipo perfura seus olhos com os grampos de cabelo da mãe.
Esta trama desoladora — e bem conhecida — é a base da nova produção teatral de Romeo Castellucci no teatro berlinense Schaubühne, na tradução que o poeta romântico Hölderlin fez do original grego. Pela terceira vez (depois de ‘The Four Seasons Restaurant’ e ‘Hyperion. Letters of a Terrorist’) o diretor coloca em cena apenas mulheres para interpretar o texto do poeta que ele considera “quintessecialmente feminino”. Castellucci se aproxima de Édipo a partir da maior distância possível, usando a estranheza da escrita anti-dramática de Hölderlin para iluminar este protótipo de tragédia e desnudar o arquétipo de traumas e tabus sexuais e familiares.
Na excelente crítica da peça no blog do Schaubühne, descobrimos que o início da peça se dá em um convento, algo que foge à história original. Édipo é colocado entre as freiras reclusas e ali se inicia toda a devastação. Mas a visão de Castellucci está, como se poderia esperar, preocupada com um conflito mais sério: aquele entre a razão (iluminista) e o que é descrito como “forças ocultas” do “desconhecido”.
Em entrevista, o diretor diz que “Édipo cai como um objeto não-identificado, um corpo estrangeiro, em um convento de freiras. São dois mundos opostos: é como um experimento para vermos o que acontece. Ele está em uma comunidade fechada, onde a fala é proibida. As únicas palavras que se ouve são em latim, partes de cantos gregorianos. É um código extremamente preciso que se colide com outro: a tradição Católica e Cristã contra o Pagão e o Grego.”
Nesse sentido, fica ainda mais evidente o questionamento religioso que perpassa a obra de Castellucci. Em “Sobre o Conceito de Rosto no Filho de Deus”, apresentado no MIT-SP em 2014 (temos uma crítica aqui), o polêmico diretor sofreu inúmeras retaliações e chegou a ter sua peça invadida por um grupo de jovens cristãos que condenavam a cena em que pedras e excrementos são jogados na imagem do rosto de Jesus, considerando-a como “fobia anti-cristã”. O evento foi filmado e está online, com diversos comentários de apoio aos manifestantes que foram retirados do palco pela polícia, sob gritos de “Liberdade de Expressão”.
A partir daí, é de toda a importância a versão de Hölderin, que tem como principal característica o fato de manter a ordem das palavras de Sófocles na transposição para o alemão, o que torna o texto infinitamente mais confuso e assombroso do que em qualquer outra tradução. A versão acaba favorecendo o lado de Tirésias, a “face obscura” da tragédia, trazendo à tona um orientalismo que aproxima a realidade da história àquela do oráculo.
O curioso é que Friedrich Hölderin, fascinado pela Grécia Antiga como todos os românticos alemães, definia o trágico justamente como o afastamento de Deus (ou Gottes Fehl, a falta de Deus), o que nos leva diretamente à pergunta: porque é que o protagonista Castellucci, por sua vez, está no coração de uma comunidade cristã?
Romeo não é nem de longe um promotor da passividade e traz sempre garantia de que o público não sairá emudecido pela obra. As opiniões nas redes sociais sobre “OEdipus the Tyrant” já transbordam rejeição, desgosto e, claro, um pouco de humor. No post do Instagram, @inter_mezzo diz: “O Édipo de Castellucci inclui um cordeiro vivo, spray de pimenta e estes intestinos gigantes. Estou pronto pro jantar.”
Sugestões de Leitura: A Revista Sala Preta, da USP, publicou dois ensaios sobre a obra de Castelucci: Peter Pál Pelbart analisa a figura de Cristo em “Gólgota picnic, ou sobre a teologia da destruição” e Laymert Garcia dos Santos lança a hipótese de o espetáculo “Sobre o conceito de rosto no Filho de Deus” ser um sonho iconólatra que perverte a iconoclastia de Romeo Castellucci.