Por Ruy Filho |
Um convite para pensar uma curadoria não é simples. Exige, para além de boas escolhas, interesse em superar o óbvio e construir algo singular que, de alguma maneira, contemple o todo por sua soma e não por oposição. O que requer disponibilidade ao olhar sobre o já existente, e também um longo amadurecimento frente às condições do mercado cultural. Somente assim, pela análise e participação, a curadoria poderá estabelecer parâmetros próprios, paradigmas singulares e validar-se como necessária.
Se isso parece óbvio, no entanto, é de se preocupar a falta de conversa entre as curadorias mais diversas, o que se aplica igualmente ao universo das artes cênicas. Aqui, já a primeira questão: por que no Brasil ainda é sobre teatro e não sobre artes cênicas? O distanciamento desse da dança e performance, atingindo com igual solidão a movimentos das artes visuais e música contemporânea com atributos e interesses também ao cênico e teatralização, fez do teatro linguagem dominante. No entanto, trouxe com isso seu isolamento na construção de estéticas e respostas sensíveis. O teatro, ainda que produtivo e maior influenciador de políticas públicas, dentre os artistas das artes cênicas, ainda assim se forjou como uma esfera de emudecimento das demais, impondo-se em busca de uma salvação às migalhas disponíveis. Boa parte dessa situação é sim decorrente de curadorias e programações que insistem em segregar as linguagens, o que, por si só, já colocaria em xeque sua validade.
Mas vamos adiante. São os festivais de teatro que, ao se comunicarem com eficiência, os responsáveis pela construção de um percurso curatorial ao teatro no Brasil. As programações de instituições e centros cultuais permanecem isoladas e independentes e quase sempre são incluídas não pela potência de suas proposições, e sim por possuírem as salas necessárias e recursos disponíveis. Fato é, ainda que parceiras, haver uma incoerente disputa na formulação das agendas e até mesmo dos artistas abrigados.
Isso posto, o ambiente teatral se consolidou aqui por duas frentes principais: a primeira, responsável por assumir as programações mais cotidianas, quase sempre através de convites a artistas e projetos específicos; a segunda, em espaços disponíveis ao uso, mediante o aluguel da sala. Em ambos os caminhos impõe-se a condição de produtificação do teatro como resposta imediata. Mesmo quando se requer estreias, o interesse maior está na sua conclusão, no seu aspecto de produto final. Tal relação com a obra, e menos com o artista, portanto, tem sustentado boa parte da produção contemporânea, o que é positivo, com consequências mais problemáticas, como a quantificação de participantes, de obras, desconfigurando as temporadas a se tornarem verdadeiros instantes e não movimentos. Sempre há o próximo espetáculo. Sempre haverá quem tope as condições de limitação.
Quem mais sofre a essa rotina ligeira é a própria arte. O pouco espaço para sua experimentação recusa a dimensão efêmera de serem as investigações estéticas e conceituais a prioridade do artista. Faz-se o que se sabe. Faz-se o mais próximo ao que já se espera. Faz-se o mesmo, pois se é estimulado os estereótipos dos modismos pelos quais se interessam os programadores e curadores.
Novamente os festivais são as possibilidades de escape a isso, ao proporem produções originais e coproduções que interajam artistas até mesmo de diversos países. Contudo, são a face macroscópica desse gesto e dependem, ano a ano, de convencimento e muitos outros aspectos para existirem.
Foi pensando também sobre isso que, ao aceitar programar o Teatro do Centro da Terra, em São Paulo voltei a olhar o que existe, o que falta, e quais poderiam ser as escolhas eficientes a todos, sejam artistas, programadores e público. Para tanto, a condição foi que não programássemos produtos, espetáculos prontos, e nem mesmo aprisionássemos os espaços, sala e teatro, como únicas possibilidades de ação, e em hipótese alguma limitados ao teatro. Sem verba, contando com a movimentação como única resposta também financeira, abriremos, a partir de abril, a cada dois finais de semana, o Centro da Terra, portanto mais além do que apenas o teatro, para ocupações de artistas. Essa foi minha escolha e participação ao mercado cultural. Abrir possibilitar a uma excelência artísticas – teatro, dança e performance – que construam a programação dessa primeira temporada não com obras específicas, mas tendo a eles mesmos como dimensão maior da ação. A presença, em resumo, é o que mais me interessa agora.
Esse tem sido o foco, desde sempre, da revista qual edito com Patrícia Cividanes, Antro Positivo. Estabelecer aproximações ao humano que existe na arte. Enquanto no digital o outro se revela por conversas sobre as inquietações que lhe exigem criar; agora é no Centro da Terra que podemos trazer o outro materializando suas inquietações, via experiências cênicas, performáticas, físicas, retóricas, dialógicas, dialéticas, sem qualquer responsabilidade em conquistar resultados e produtos.
Possivelmente, o que acessaremos no Centro da Terra será uma coleção de artistas e não de objetos em prateleiras. Um risco real e assustador, afinal, quando convidados, não lhes pedi projetos ou propostas, apenas lhes expliquei serem eles. O restante é consequência da importâncias de suas inquietações.
Dentre os nomes confirmados para essa primeira temporada, temos o prazer de ter: Alexandre de Angeli, André Guerreiro, Claudia Schapira + Luaa Gabanini + Núcleo Bartolomeu de Depoimentos, Diogo Granato, Diogo Liberano + André Felipe +Gustavo Colombini, Dione Carlos, Eduardo Fukushima, Elisa Ohtake, Eric Lenate, Gabriela Mellão, Inez Viana, Michelle Moura + convidados, Miwa Yanagizawa + Camila Márdila + Liliane Rovaris + Maria Silvia Siqueira Campos, Janaina Leite, Nathalia Catharina, Patrícia Bergantyn, Rubens Velloso + Phila7.
Nesse momento de desmonte da cultura, por todo país, de negação pública do Ministério da Cultura, convidar os artistas a entrarem, para apenas existir, é um ato de insurreição fundamental em favor do pensamento, das experiências sensíveis, da ampliação crítica, da desprodutificação imposta à arte pelo neoliberalismo desenfreado, de confrontamento às modulações éticas, de permanência, de existência. Juntos, dezenas de artistas, agora encontram em São Paulo um espaço que se destina a fazer da arte o que lhe cabe: arte. E mais. Um mover as peças centrais entre curadores e programadores para olhares mais abertos, mais amplos, menos pragmáticos, mais arriscados e em paralelo. Afinal, o isolamento só interessa a um lado. E temos visto o quanto esse lado é eficiente em ser destrutivo.
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Ruy Filho é curador de Teatro, Dança e Performance do Teatro Centro da Terra, editor da revista Antro Positivo, crítico teatral, diretor e dramaturgo.
[foto: Norair Chahinian]