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A CARNE DOLOROSA DA PALAVRA

Philippe Minyana, cujo nome verdadeiro é Philippe Miñana, nasceu em Besançon, na França, em 1946. Ele tem mais de 30 peças editadas por Éditions Théâtrales, L’Ávant-Scène ou por Actes Sud-papiers e, a partir de 2008, passou a ser publicado pela editora l’Arche. A maioria dessas peças já foi encenada. A obra de Minyana foi bastante influenciada pelo dramaturgo e encenador Michel Vinaver, com quem já trabalhou como ator.

No Brasil, além do texto André, traduzido por mim e encenado em novembro de 2007 no Oi Futuro, com direção de Christiane Jatahy, tivemos somente a montagem de Suíte 1, pela Companhia Brasileira de Teatro, sob a direção de Márcio Abreu e tradução da atriz Giovana Soar , publicada na coleção bilíngüe Palco sur Scène pela Imprensa Oficial de são Paulo. No documentário realizado por Jérôme Descamps “La secrète architecture du paragraphe – Rencontre avec Philippe Minyana” (2002), o autor Philippe Minyana é convidado a se apresentar e falar sobre sua vida e seu trabalho.

Na primeira parte do trabalho, ele chega diante das câmeras como se estivesse num estúdio de um programa de entrevistas e mostra uma caixa cheia de objetos. Ele vai retirando aleatoriamente um objeto de cada vez de dentro da caixa e vai contando os pedaços de sua vida ou de seu trabalho relacionados com este objeto. Seu discurso é levado para determinada época ou aspecto de sua vida, segundo o objeto retirado. No final da entrevista ele recolhe tudo, fica um tempo em silêncio e sai de cena simplesmente. Sua vida estava naquela caixa. É o que ficará dele quando sair de cena.

Num segundo momento do documentário, ele está no seu apartamento, diante de uma resma de papel vazia, enquanto fala dos sofrimentos e dos prazeres do corpo durante o ato de escrever. Ele diz que o dia em que consegue colocar as primeiras palavras na resma sente uma enorme satisfação no seu corpo e a noção de tempo fica perturbada. Ele descreve essa satisfação como uma espécie de voluptuosidade. Por outro lado, quando sente que atravessa o perímetro que deve ser desenhado pelas palavras que foi pressentido antes mesmo de ser escrito, ele sente febre , calor e manifestações no corpo.

Com este documentário, podemos perceber as obsessões do autor com a arquitetura e sonoridade das palavras, com a presença dos objetos e detalhes da vida quotidiana para apresentar os vestígios de uma vida, bem como os sofrimentos que a palavra, o tempo e a vida infringem nos corpos.

Com sua escrita, Minyana procede a uma autópsia dos corpos e do sofrimento. As menores partes do corpo e os objetos mais insignificantes adquirem autonomia na sua escrita. O corpo é apresentado em partes, em série. Na peça ANDRÉ, vemos desfilar: as costas, a voz, o ventre, o joelho, as orelhas, os olhos, a cabeça, o lábio superior, o sorriso número 1, o sorriso número 2, etc. Paralelamente a este desfile de pedaços de corpos, temos um levantamento de objetos e animais: a janela, as moscas de agosto, o sol, o café, o linóleo da mesa, a casa de granito, a xícara, os produtos farmacêuticos, as terras, os pastos, o milho, o girassol, as cabras e as ovelhas.

Através dos objetos, os labirintos da memória vão sendo desvelados também nos monólogos da peça Inventaires, onde as três mulheres, JACQUELINE, ANGELE e BARBARA, diante de um microfone ou câmera de TV, fazem um inventário de suas vidas de traços da memória, num duelo da palavra, sem pausa, aproveitando cada tempo cedido pela campainha para avançar o máximo na corrida das palavras.
Nesta peça, cada monólogo das três mulheres pode ser chamado, ele mesmo, de objeto, como um bolo gigantesco cortado e oferecido ao público. O discurso dessas mulheres se mistura com elas mesmas e com os objetos que elas carregam. Cada uma delas escolheu um objeto para o qual o passado contribui conferindo-lhe uma identidade. ANGELE tem sua roupa de 1954, que ela sempre usou nos momentos felizes e prazerosos, roupa que faz pensar em fetiche amoroso, em corpo fantasiado pelos homens, corpo olhado e imaginado. BARBARA tem seu abajur, que ilumina os corpos do exterior, corpos exteriorizados. E a bacia de JACQUELINE que serve para cuspir seus pulmões e onde lavava seus legumes. Bacia, ventre, receptáculo de vida e morte, como o ventre de JACQUELINE que teve oito filhos e se propunha a ser mãe de aluguel. Sua bacia inoxidável se transforma em útero que produz vida e morte. Elas oferecem a intimidade, os sofrimentos e dores como mercadoria num jogo competitivo.
O corpo também expele líquidos, sangue, saliva, xixi, vômito. Na peça Chambres, LATIFA sangra no nariz e vomita. KOS encontra sangue no colchão de BORIS e no jornal, BARBARA , quando era bebê vomitava em sua irmã e seu pai batia nela e ele morreu perdendo todo o sangue pela boca, numa “ruptura de aneurisma”. O esperma do marido de BARBARA não tinha “nenhum valor” por causa da varicela.
A escrita de Minyana dilacera o corpo através das palavras. Ele cria cerimônias de luto e cultiva os mortos e os cadáveres. Podemos falar de uma escrita performática na medida em que se apresenta em construção, atuando no corpo com as palavras. Minyana expõe a subjetividade e a escrita como processos em construção, numa escrita que exige a respiração e a voz para se estabelecer.

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