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A ATMOSFERA DE ROSETTA

Com mais de 10 anos de sua estréia, um asteróide da cinematografia belga cruza os ares argentinos: é Rosetta, dirigido pelo duo Jean-Pierre e Luc Dardenne em 99 e que estreou no último dia 31 nos cinemas de Buenos Aires.

A princípio não há como se identificar com Rosetta – ela é uma pessoa mais perturbada que o normal, com uma mãe alcólica, uma instabilidade financeira e profissional e uma simples pré-disposição a enfrentar a tapas qualquer um que interfira no seu caminho tão batalhado quanto desconhecido por ela própria. A vida de Rosetta não é invejável e a câmera convulsiva sempre a persegue como que a sufocando e tirando o nosso ar, ao mesmo tempo.

O público não é embalado em momento algum por uma trilha-sonora. Ao contrário, os sons insuportáveis de motocicletas e caminhões dominam as cenas, machucam os ouvidos. Daí se tira a conclusão de que Rosetta não é um filme agradável. E essa é a mais pura verdade. É um dos filmes mais indigestos: sem começo, sem fim, sem música, sem sexo e sem carisma, o que leva diretamente ao ponto, um filme sem atmosfera.

O momento exato em que entendi a genialidade do filme foi quando, irritado após o término, fui a banheiro. No mictório, ouvi a amplitude de sons que geralmente ignoro mas que naquele momento me feriam e me lembrei do texto de Warhol que vi dias antes no Malba, com a frase: “And your own life while it’s happening to you never has any atmosphere until it’s a memory.” Em meio à minha viagem porteña, esta frase que revisita uma questão tão simples tem permeado meus dias com a relação ao que se deve sentir ao estar em um lugar especial, vendo uma paisagem fenomenal ou passando por novas experiências. O que, afinal, acontece no presente?

É com este sentimento excruciante que eu deixei a sala de cinema, é com este sentimento que entendi Rosetta e, me dando conta da influência que o cinema tem sobre nossas experiências, pensei: se a falta de atmosfera passasse a pertencer majoritariamente às telas, a atmosfera das nossas vidas seria mais “real”?

(Para quem quer mais Dardenne, há o ótimo “A Criança”, vencedor da Palma de Ouro de Cannes em 2005, e o mais recente “O Silêncio de Lorna”, ambos imperdíveis.)

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