Parte I: o museu como campo de batalhas
“Inicialmente foram os alquimistas chineses que descobriram a pólvora; ao procurarem o elixir para a vida eterna, eles descobriram seu exato oposto: a ferramenta da mortalidade imediata.”
A frase pertence a uma das palestras-performances de Hito Steyerl, artista e filósofa alemã cada vez mais reconhecida na cena internacional, além de integrar o corpo docente da Universität der Kunste, em Berlim.
Por ocasião da 13ª Bienal de Istambul, em 2013, Hito “costurou” uma história na qual articulava magistralmente as relações intrínsecas da indústria da guerra e da indústria da arte, sem medo de levantar questões contra arquitetos-celebridade, artistas e instituições. A ideia de costura fica por conta das palavras e gestos que a filósofa usa para tecer associações quase impossíveis, repletas de licenças poéticas que propõem um mergulho irresistível, ao mesmo tempo real e metafísico.
O vídeo entitulado ‘Is the museum a battlefield?’ [Seria o museu um campo de batalha?], apresentado na Bienal, está disponível na íntegra aqui — e compreende os assuntos acima apontados:
Is the Museum a Battlefield from Museum Battlefield on Vimeo.
(em inglês com legendas em turco e curdo, sorry!)
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Parte II: a guerra como rede
O trabalho de Steyerl me pareceu necessário para apresentar o espetáculo ‘Situation Rooms’ do grupo alemão Rimini Protokoll, que esteve em cartaz no teatro Hebbel am Ufer. Não apenas porque ambos falam sobre a teia global da indústria bélica, mas também porque pude ver os dois na mesma semana, em Berlim.
A linguagem do documentário teatral é a marca registrada de Rimini, que já esteve no Rio com ‘Torero Portero’, e está mais do que nunca presente em ‘Situation Rooms’. Porém, o formato usual — de utilizar não-atores para contar uma história real — é alterado, colocando os próprios espectadores como cobaias em um laboratório de experiências pré-determinadas.
O palco não existe. No lugar dele, estão diversas caixas nas quais 20 pessoas (por sessão, em 5 sessões diárias) explorarão cenários distintos que se entrelaçam através do percurso de 10 personagens. Cada participante segura seu tablet em frente ao rosto e recebe ordens através de fones de ouvido, que guiam toda a trajetória ao longo dos 90 minutos de peça, a partir do momento em que atravessam a porta de entrada.
Ao atravessarmos a porta de entrada do cenário nos tornamos Volker Herzog, por exemplo, um cirurgião da ONG Médicos Sem Fronteiras que nos conta sobre sua preparação para trabalhar num campo de batalha em Serra Leoa e relata que em outra situação já se confrontou com um acidente típico de guerra: um paciente sem as duas mãos.
Podemos ainda ser incorporados pelo suíço Reto Hürlimann, gerente de sistemas de defesa, que afirma que para a maioria de seus funcionários pouco importa se estão criando ferramentas ou sistemas bélicos — o que importa é o desafio do trabalho e a estabilidade financeira que ele fornece.
Também podemos ser Irina Panibratowa, uma ex-gerente de restaurante em uma fábrica de armas, Nathan Fain, um hacker capaz de forjar cartões eletrônicos de acesso a aeroportos, bancos e plantas nucleares ou Andreas Geikowski, um campeão mundial de tiro de alto calibre. Ao todo são 20 personagens (uma sessão só te dá acesso à metade da história) conectados pela tênue e perigosa linha que une diversos profissionais e vidas na indústria de armamentos.
Para começarmos a entender o projeto do grupo alemão temos que partir do título. ‘Situation Room’ é o nome da sala que ficou conhecida pela foto de 2011, na qual dirigentes do alto escalão dos EUA assistem estarrecidos à captura de Osama Bin Laden.
Assim como os funcionários da sala situada na Casa Branca, habitamos os cenários da peça como protagonistas do mesmo, fazemos parte daquele espaço. Como espiões disfarçados, vivemos na pele de outras pessoas, próximas e distantes, todos envolvidos – direta ou indiretamente – no fenômeno da guerra. Somos também personagens de um documentário em tempo real, interagimos com outros “personagens” e nos tornamos reféns de nossas escolhas.
A sala “situacional” também traz a ideia de rede, um compartimento ligado a uma rede de informações privilegiadas e em primeira mão. Ao entrarmos, fazemos parte também de um seleto grupo que poderá acessar um conhecimento estratégico. Um dos cenários, uma sala de reunião, traz a mais forte alusão ao título da obra. É nela que finalizamos nosso trajeto, encarando face a face, iPad a iPad, os rostos de nós mesmos (na sala) e de nós mesmos (na tela).
Interessante aqui é observar como a própria guerra funciona como uma rede: são os conflitos que articulam uma diversidades de tecnologias de ponta (Ipads e Bombas de última geração) e de discursos (os inúmeros profissionais, dentre médicos, engenheiros, estudantes, políticos etc.).
Dito isto, podemos perguntar: se o museu é um campo de batalhas, a guerra seria a nossa rede?